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STF e a decisão sobre o termo MÃE: o que queriam, o que mudou e a importância da pressão popular.

A MATRIA já havia comentado o absurdo da ADPF 787 em todos os seus aspectos, aqui no que diz respeito a alterar os sistemas do SUS para que todos os exames possam ser agendados por “ambos os sexos” e, mais recentemente, aqui em relação ao debate em curso no Supremo Tribunal Federal (STF) acerca da alteração, na Declaração de Nascido Vivo (DNV), de “mãe” para “parturiente” e de “pai” para “responsável legal”.


A petição inicial (peça 1 do processo) do Partido dos Trabalhadores (PT) traz a seguinte argumentação em relação ao pedido de alteração da DNV,  parecendo amalgamar questões tão distintas quanto casais homoafetivos e "identidades de gênero":


33. Não bastasse as barreiras impostas pelos sistemas de informação do SUS, há, ainda, a emissão de Declaração de Nascido Vivo, em que as categorias “pai” e “mãe” além de limitantes – posto que a filiação pode ser composta de outras maneiras como, por exemplo, por duas mães – têm sido preenchidas de forma inadequada. 


34. Isto é, tem havido a errônea vinculação das categorias de “pai” e “mãe” ao sexo atribuído ao nascer. Consequências deste problema são situações como, por exemplo,homens trans que – tendo gestado seus filhos – são pais biológicos acabam por ser incluídos no DNV como “mães”, com base no único e arbitrário critério de possuírem capacidade gestativa. 


35. Um exemplo – amplamente divulgado pela imprensa – de preenchimento discriminatório do referido documento, é o que aconteceu com Yuna Santana e Theo Bandon, relatado em entrevista concedida ao portal de comunicação da Universidade Federal da Bahia: 

[...] A dificuldade foi com a emissão da Declaração de Nascido Vivo (DNV) que é emitido pelo local em que o parto ocorreu, no nosso caso o Hospital Santo Amaro. A DNV é primeiro documento com valor jurídico que serve de base para que o oficial de registro proceda com a emissão da certidão. Lá ainda constam essas categorias, pai e mãe, e foi muito difícil convencer o setor jurídico do hospital que nossas identidades de gênero são legítimas e legalmente reconhecidas, ou seja, não existe nenhum impedimento jurídico em me declarar como mãe e Theo como pai. Nós nos recusamos a ter esse documento emitido em desacordo com nosso gênero expressado e socialmente vivido pela questão de reconhecimento legal das nossas identidades trans. [...] Eu já tenho o sexo feminino e meu marido tem o masculino nos documentos e, mesmo assim, sob o argumento que era um fato médico, o sexo biológico, eles queriam atribuir esses papéis sociais a nós de acordo com a genitália com a qual nascemos, o que foi um completo absurdo. A rede SUS, na figura do Instituto de Perinatologia da Bahia (Iperba), baseada em um parecer do Cartório de Brotas, se recusou, o que considero uma profunda desvalorização dos recentes direitos da população trans conquistados via judiciário e dos Direitos Humanos de modo geral, respeitados e destacados pela nossa Constituição Federal. Não foi fácil, as estruturas sociais, sobretudo as instituições de saúde, não estão preparadas para esse diálogo. 


(...)


VI – DOS PEDIDOS


ii. Garantir o registro, na Declaração de Nascido Vivo e em documentos correlatos, dos nomes dos genitores de acordo com sua identidade de gênero, independentemente de ser ou não parturiente.

[grifos nossos]


O que o PT queria, portanto, era que a DNV registrasse como "mãe" a pessoa do casal que assim se autodeclarasse, "independentemente de ser ou não parturiente", ou seja, que pessoas do sexo masculino, que não podem parir, constassem em documentos oficiais como "mães", uma demanda que tem sido recorrente por parte de indivíduos que se autodeclaram mulher. [1]


O primeiro debate dos Ministros do STF sobre o tema, em 18/09/2024, trouxe a proposta de substituição do campo "mãe" por "parturiente" para contemplar as pessoas do sexo feminino que, apesar de terem passado pela experiência mais exclusiva das mulheres, se autodeclaram como homens. Tal proposta, como vimos acima, não partiu da petição inicial do PT, mas consta do pedido de ingresso no processo como amicus curiae (peça 73) da ANTRA (Associação Nacional de Travestis eTransexuais), que traz essa única citação à questão das nomenclaturas:


1. SÍNTESE. Como se sabe, foi pautada para julgamento no dia 29.05.2024 (próxima quarta-feira) esta ADPF 787, na qual se requer, em síntese, o reconhecimento da existência de profunda discriminação estrutural e institucional das pessoas transgênero (as travestis, as mulheres transexuais e os homens trans) no SUS – Sistema Único de Saúde, bem como se tomem medidas aptas para superá-la. Isso porque os documentos anexados à ação comprovaram a existência de discriminação das mulheres trans, que são mulheres com próstata, nos atendimentos médicos de proctologistas, bem como a discriminação dos homens trans, que são homens com vagina, nos atendimentos médicos de ginecologistas, entre outras situações discriminatórias. Por isso, foi concedida medida cautelar pelo Min. Gilmar Mendes (Relator), para que: (i) os sistemas de atendimento sejam adaptados e atualizados para garantir atendimento médico com base na autodeclaração de gênero dos(as) pacientes, inclusive para fins de respeito ao nome social das pessoas trans, para fins de garantia do direito fundamental social à saúde de forma universal, igualitária e gratuita, sem discriminação por identidade e expressão de gênero; (ii) alteração do formulário da DNV – Declaração de Nascido Vivo, para constar a categoria “parturiente”, independente de nomes da pessoa genitora, para respeitar a identidade de gênero dos homens trans grávidos; e (iii) determinar ao Ministério da Saúde que estabeleça diretrizes para orientar as unidades notificadoras a alimentar os registros respectivo de maneira uniforme. Iniciado o julgamento virtual, houve pedido de destaque pelo Min. Nunes Marques, que gerou a designação de data para julgamento presencial. [grifo nosso]


Ou seja, a ANTRA considerou, neste momento, que a palavra "parturiente" seria suficiente para "respeitar a identidade de gênero dos homens trans grávidos" (sic).


Para o campo "pai", não está claro como surgiu a proposta de "responsável legal", expressão que remete imediatamente a épocas nas quais o homem era o único a exercer o pátrio poder sobre os filhos. 


Felizmente, não houve consenso entre os Ministros em relação à exclusão dos campos "mãe" e "pai" para a adoção destes termos tão infelizes, o que permitiu à sociedade civil se organizar.


A MATRIA se mobilizou para conseguir recursos de doações e enviar sua advogada a Brasília para cumprir agenda com assessor do Ministro Gilmar Mendes, relator do processo, e em seguida protocolar pedido de entrada como amicus curiae no processo (peça 114), expondo os diversos impactos negativos da mudança proposta para os termos "mãe" e "pai" no primeiro documento de uma criança, como:

  • o direito da criança de ter acesso a informações verdadeiras sobre sua origem, ou seja, sua mãe e seu pai biológicos, sempre que possível;

  • a realidade inegável de que "mãe" é um termo universal e que se refere exclusivamente a mulheres, já abarcando a todas as mulheres, independente de outras peculiaridades das situações individuais (mães adotivas, lésbicas, etc);

  • o absurdo de se criar uma equivalência entre "pai" e "responsável legal", como se à mãe não fosse também atribuída responsabilidade legal;

  • o despropósito da adesão por parte do Estado à noção de "identidade de gênero", que significa a imposição, a toda a população, da crença de que uma parcela minúscula da população tem a seu próprio respeito. 


Após protocolo da peça da MATRIA e apenas dois dias antes do julgamento (remarcado para dia 16/10/2024 após pedido de vistas pelo relator), a ANTRA protocolou nova Manifestação (peça 122) da qual destacamos alguns trechos, tanto por serem pontos que não haviam sido mencionados em seu pedido de ingresso de amicus curiae (peça 73) ou em sua sustentação oral (peça 123), quanto porque a peça foi citada em plenário pelo Ministro Luís Roberto Barroso:


4. [trecho destacado no documento] embora obviamente a ANTRA não se oponha a que haja opção entre “mãe” e “parturiente”, para que a mulher cis possa escolher, daí se pede que também se dê a opção a “pai parturiente” ou equivalente aos homens trans, por isonomia.


(...)


8. A concordância da ANTRA aqui formulada é importante também para rechaçar espantalhos e discursos de ódio contra ela e o chamado transativismo (trans-ativismo) em geral, no sentido de que o reconhecimento do direito à nãodiscriminação por identidade de gênero das pessoas trans não traz nenhum prejuízo aos direitos das pessoas cis(gênero). A mãe-parturiente mulher cisgênero deve poder continuar ser identificada como “mãe” nos documentos de identificação de seus filhos ou filhas, disso não pode haver dúvida. A questão é que o pai-parturiente homem trans também tem que poder ser identificado como “pai” de seus filhos ou filhas nos documentos respectivos e não como “mãe” (sic).


A palavra "parturiente", que em maio de 2024 foi proposta pela ANTRA como opção satisfatória para "respeitar a identidade de gênero dos homens trans grávidos" (sic), de repente passa a não ser mais aceitável uma vez que o STF cogita também manter como opção "mãe" no mesmo campo da DNV, o que contradiz totalmente a afirmação de que seria um "espantalho" afirmar que a organização em específico e o transativismo no geral trabalham ativamente pelo apagamento de mulheres e mães.


Em gesto raramente visto em sessões do STF, o Ministro Barroso leu o documento recém protocolado durante a sessão e fez a seguinte fala: 


Aqui eu tenho, Ministro Gilmar, a informação de que a Associação Nacional de Travestis e Transexuais encaminhou memoriais no sentido de que não se opõe à proposta do Ministro André Mendonça, desde que seja dada a possibilidade não só de mães optarem por serem designadas como parturiente/mãe, mas também que pais possam optar por serem designados como parturiente/pai. Então a proposta seria manter o campo para indicar quem é o pai e a mãe… [grifo nosso]


Não é possível saber qual teria sido a continuação de sua fala caso não tivesse sido interrompido, mas a "não oposição" da ANTRA pareceu digna de destaque para a aceitação, pelo Presidente do STF, da sugestão de manter a palavra "mãe" no campo que se encaminhava para conter apenas a palavra "parturiente". O Ministro também conseguiu rapidamente colocar o novo pleito da Associação aos seus colegas.


No entanto, a fala acima foi interrompida pelo Ministro André Mendonça (afirmando, supõe-se que a respeito da opção parturiente/pai, "são necessariamente parturientes"), por sua vez interrompido por Gilmar Mendes, que sequer entendeu o absurdo da proposta de que um pai pudesse ser "parturiente", pois seu comentário a respeito do campo "pai" foi que "esse segundo campo já é facultativo" [como nem todo pai é conhecido/assume seus filhos, esse campo não é de preenchimento obrigatório].


Com a concordância de todos os Ministros, foi então lida a tese do relator Gilmar Mendes, que decidiu pela alteração da Declaração de Nascido Vivo não com exclusão das palavras "mãe" e "pai" mas com o acréscimo das opções "parturiente" (junto a mãe) e "responsável legal" (junto a pai).


Trata-se de uma derrota tanto para o PT, que solicitou que pessoas do sexo masculino pudessem constar do campo "mãe", quanto para o transativismo, que ao perceber que não seria vitorioso em apagar a palavra "mãe" tentou que a palavra "pai" constasse no campo relativo a quem pariu o bebê.


Ainda assim, preocupa-nos dois pontos em especial:

  1. a inserção do termo "responsável legal" no campo "pai"; e

  2. a continuação de uma política, por parte do STF e do Estado brasileiro, de negação da realidade.


Para nós mulheres é chocante que não tenha havido qualquer debate a respeito do emprego do termo "responsável legal" para designar os pais. Como em todas as situações envolvendo demandas transativistas, o foco do debate é sempre nos termos relativos a mulheres (no caso, o campo "mãe") para que, de todas as formas possíveis, nossos direitos sejam minados. Ainda assim, é estarrecedor que, em pleno século XXI, uma corte que se diz defensora da democracia e das minorias, desconsiderar séculos de história de opressão às mulheres e sequer questionar a equivalência entre pai e "responsável legal" ou se sentir obrigada a justificar a escolha por este termo?


Em dado momento, o Ministro Barroso comentou: "eu gosto da ideia parturiente/mãe porque eu acho que a gente respeita as duas concepções de mundo e cada um escolhe onde quer estar". Mas e se a concepção desse nosso mundo caminhar cada vez mais para a adoção do termo "mãe = parturiente" de um lado, mas "pai = responsável legal" do outro, quais as implicações disso para nossos direitos e de nossos filhos?


De forma ainda mais ampla, o STF reforçou mais uma vez a institucionalização da crença que uma parcela minúscula da população tem a seu próprio respeito, fazendo alterações em documentos oficiais que, para acomodar essas crenças, negam a realidade material e objetiva compartilhada por toda a população, com todas as consequências que a MATRIA vem denunciando.


Para concluir, é importante destacar que o resultado da sessão de hoje no STF, embora não tenha sido totalmente satisfatório, indica que estamos conseguindo nos fazer ouvir, ao menos parcialmente: a pressão social por meio da mídia, do envio de e-mails, comentários, mobilização em redes sociais e, estamos convictas disso, a ida de nossa advogada a Brasília, têm impacto. 


Por isso, seguiremos firmes em nosso trabalho e contamos com a colaboração de todos nessa caminhada! Associe-se à MATRIA, apoie, faça doações.


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