Tomamos ciência, na data de hoje, dos termos dos Editais 05/2024 – Mestrado e 07/2024 – Doutorado, com cotas de 5% para pessoas autodeclaradas "trans", nos processos seletivos de pós-graduação da Faculdade de Educação da USP (FEUSP).
Em ambos os Editais (mestrado e doutorado), o item 2.2.1 estabelece:
2.2.1 A reserva de vagas obedecerá a seguinte distribuição:
I. quarenta por cento (40%) das vagas para negros/as (pretos/as ou pardos/as);
II. cinco por cento (5%) das vagas para indígenas;
III. cinco por cento (5%) das vagas para pessoas com deficiência;
IV. cinco por cento (5%) das vagas para pessoas trans;
Não há nos Editais definição do que seria uma "pessoa trans", menção à existência de Comissão de avaliação da autodeclaração ou detalhes sobre o que constituiria "falsidade" na autodeclaração, situação para a qual informa-se a aplicação das "penalidades previstas em lei".
Sendo "trans" atualmente utilizado como um termo guarda-chuva para dezenas de "identidades" autodeclaratórias, subjetivas, não verificáveis e portanto infalsificáveis, de fato torna-se impossível questionar a "veracidade" da autodeclaração através de heteroidentificação. Dentro da lógica do transativismo, tais identidades são de toda forma "fluidas", podendo a qualquer momento mudar sem que isso possa ser considerado uma fraude.
Observe-se que há resoluções em vigor na USP regulamentando a heteroidentificação de pessoas autodeclaradas negras (de cor preta ou parda) e indígenas:
Resolução CoIP n.º 8557/2023, que altera a Resolução CoIP n.º 8287/2022 - Estabelece um complexo processo de heteroidentificação em duas etapas para pessoas negras;
Resolução CoIP n.º 8558/2024 - Estabelece o funcionamento da "Comissão de Verificação", para pessoas de etnias indígenas que se inscreverem através de reserva de vagas.
Uma busca pela palavra "trans" na categoria "Resoluções" não retorna nenhum resultado:
Encaminhamos à Universidade pedido, via portal SIC, de esclarecimentos a respeito do processo de tomada de decisão pela implementação destas cotas e da escolha de seu percentual de 5%, em paridade com os percentuais de indígenas e pessoas com deficiências.
Em nossa experiência com outras universidades, as justificativas para tais cotas costumam centrar-se em afirmações genéricas que nosso Relatório "Falsas Afirmações sobre a população autodeclarada trans no Brasil" já demonstrou serem falsas, como "a expectativa de vida e pessoas trans é de 35 anos" e "o Brasil é o país que mais mata pessoas trans". Tais afirmações incorretas criam a falsa ideia de vulnerabilidade para todo um grupo de pessoas quando, na realidade, trata-se de grupo absolutamente heterogêneo.
Qual seria a vulnerabilidade de uma pessoa branca, de classe média alta, do sexo masculino, que decide declar-se "não-binária" e, portanto, "trans"? Qual a reparação histórica alcançada ou a justiça social em ação ao destinar uma cota no ensino superior público a tal pessoa?
Para o ingresso na graduação da Universidade, a regra vigente encontra-se na Resolução n.º 8467/2023 e prevê reserva de vagas para estudantes oriundos de famílias de baixa renda, egressos do ensino público e pessoas autodeclaradas pretas, pardas ou indígenas. No Parágrafo único do Art. 3º, há a seguinte previsão:
Na reserva de vagas para egressos da escola pública incidirá percentual de reserva de vagas para candidatos autodeclarados pretos, pardos e indígenas equivalente à proporção desses grupos no Estado de São Paulo, segundo o último Censo da Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
Tal parágrafo foi mencionado para apontar que, embora não esteja submetida à Lei mencionada abaixo, vigente unicamente para instituições de ensino superior federais, a USP claramente se inspirou da mesma.
A Lei 12.711/2012, regulamentada pelo Decreto 7.824/2022, traz as seguintes previsões de cotas para o ensino superior federal (grifo nosso):
Art. 3º Em cada instituição federal de ensino superior, as vagas de que trata o art. 1º desta Lei serão preenchidas, por curso e turno, por autodeclarados pretos, pardos, indígenas e quilombolas e por pessoas com deficiência, nos termos da legislação, em proporção ao total de vagas no mínimo igual à proporção respectiva de pretos, pardos, indígenas e quilombolas e de pessoas com deficiência na população da unidade da Federação onde está instalada a instituição, segundo o último censo da Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
Já o Decreto traz o seguinte trecho (grifo nosso):
Art. 2º As instituições federais vinculadas ao Ministério da Educação que ofertam vagas de educação superior reservarão, em cada concurso seletivo para ingresso nos cursos de graduação, por curso e turno, no mínimo cinquenta por cento de suas vagas para estudantes que tenham cursado integralmente o ensino médio em escolas públicas, inclusive em cursos de educação profissional técnica, observadas as seguintes condições:
I - no mínimo cinquenta por cento das vagas de que trata o caput serão reservadas a estudantes com renda familiar igual ou inferior a um salário mínimo per capita; e
II - as vagas de que trata o art. 1º da Lei nº 12.711, de 2012, serão preenchidas, por curso e turno, por autodeclarados pretos, pardos, indígenas e quilombolas e por pessoas com deficiência, nos termos da legislação pertinente, em proporção ao total de vagas, no mínimo, igual à proporção respectiva de pretos, pardos, indígenas e quilombolas e de pessoas com deficiência na população da unidade federativa onde está instalada a instituição, segundo o último censo da Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE.
Não foi possível encontrar normativa para o conjunto de pós-graduações da USP, mas em relação à Faculdade de Educação especificamente, foi publicada a Resolução CoPGr n.º 8432/2023, que aprova o novo Regulamento do Programa de Pós-Graduação em Educação e, seu item XV, informa de maneira genérica:
XV – OUTRAS NORMAS
XV.1 Ações Afirmativas do Programa de Pós-Graduação em Educação da FEUSPXV.1.1 Reconhecendo a importância do engajamento das Instituições de Ensino Superior em todas as lutas pela expansão de direitos, pela afirmação da igualdade e pela valorização da diversidade, o Programa compromete-se com a promoção e a efetivação de ações afirmativas nos diferentes âmbitos de suas iniciativas voltadas para discentes e docentes. Essas ações serão explicitadas nos respectivos editais.XV.1.2 A fim de realizar esse compromisso, o Programa deverá prever ações afirmativas específicas a cada um de seus processos e procedimentos, tais como editais e chamadas relativos à distribuição de vagas, bolsas e verbas, criando mecanismos que reflitam seu engajamento em favor da igualdade e da justiça social.XV.2 Estudante EspecialA cada ano, o Programa elaborará e divulgará amplamente regramento para a matrícula de estudantes especiais em disciplinas de seu curso de pós-graduação.
Em ambos os casos, estadual e federal, conclui-se que as únicas cotas possíveis, posto que as únicas previstas em Lei e Resolução, são para pretos, pardos, indígenas, quilombolas e pessoas com deficiência, com ênfase ainda no critério social.
Na esteira de outras universidades públicas, a USP, uma das mais importantes universidades do país, está incorrendo em ilegalidade ao reservar cotas para uma categoria indefinível de pessoas, sem previsão legal. Cabe aqui apontar que instituições públicas, diferentemente de entes privados (que têm a liberdade de fazer tudo que não é proibido por lei), são regidas pelo Direito Público, que só permite o que está estritamente previsto na legislação.
Caso a pessoa autodeclarada "trans" se enquadre em algum dos critérios previstos nas normas, já estará contemplada pela política de cotas. Caso não se enquadre em nenhuma dessas categorias de vulnerabilidade social, por que deveria ser contemplada? Em que uma autodeclaração, pura e simples, que não precisa sequer ser acompanhada de uma "transição" visível, altera a realidade material da pessoa? Indo além, mesmo que haja uma transição física, considerando uma trajetória de estudos de qualidade, por que uma cota para pós-graduação?
Um último ponto diz respeito à determinação legal de que as cotas se dêem em proporção no mínimo igual à proporção de cada categoria de pessoa contemplada, conforme dados do IBGE para a unidade federativa da Universidade. Considerando que não existem dados do IBGE para quem se autodeclara "trans", sendo inclusive impossível produzir estatísticas para identidades mutáveis e sem registro oficial, qualquer percentual de cotas terá sido escolhido sem bases concretas.
Apesar de não se tratar de dado oficial do IBGE (portanto sem validade para fins de política pública), o estudo mais usualmente citado a respeito da dimensão da população autodeclarada "trans" no Brasil foi publicado pela Faculdade de Medicina de Botucatu, da Universidade Estadual Paulista (UNESP), na Nature Scientific Reports, em 2021. Tal estudo estima que 2% da população brasileira se autodeclararia "trans", percentual inferior ao da cota concedida pela USP.
Diante de tantas outras categorias materialmente definíveis, com situações de vulnerabilidade historicamente conhecidas e facilmente comprováveis no que diz respeito a ingresso e permanência na pós-graduação, como é o caso de mães solo, por exemplo, o que está por trás da proliferação de cotas para pessoas autodeclaradas "trans"?