A MATRIA enviou sua contribuição para a visita da Relatoria da OEA sobre liberdade de expressão. Leia abaixo nossa carta:
A MATRIA - MULHERES ASSOCIADAS, MÃES E TRABALHADORAS DO BRASIL, pessoa jurídica de direito privado, suprapartidária, sem fins lucrativos, com autonomia administrativa e financeira, de âmbito nacional e constituída por administração coletiva, é uma organização da sociedade civil para a proteção dos direitos de mulheres e crianças com base no marcador "sexo".
Em razão da visita da Relatoria ao Brasil e do chamado para contribuições, relatamos abaixo o cerceamento à liberdade de expressão de mulheres e outros grupos que vêm tentando há anos promover o debate acerca das implicações de políticas públicas implementadas a partir do conceito de "identidade de gênero", que redefine a categoria "mulher" para "quem se autodeclara mulher, independentemente do sexo". É importante observar que tal alteração nunca foi plataforma eleitoral de nenhum governo: à população, não foi dado direito de voto a esse respeito, portanto o direito de manifestar sua opinião. Além disso, não foram promulgadas leis sobre o tema, o que implica em alterações impostas sem os trâmites democráticos que permitiriam o debate em foro adequado. Trata-se de mudanças impostas via judiciário, implementadas pelo executivo sem diálogo com a sociedade civil, ou através de Conselhos como Conselho Nacional de Justiça, Conselho Federal de Medicina e Conselho Federal de Psicologia, entre outros. Em nenhum dos casos foi fomentado um debate livre e democrático sobre o tema, o que implicou na criação de grupos como o nosso para, a posteriori, levantar discordâncias e apontar os impactos negativos decorrentes do rumo tomado pelo Estado brasileiro. Nem assim, no âmbito da organização constitucionalmente garantida à sociedade civil, tem sido permitido às mulheres a livre expressão de suas opiniões quanto à sua realidade, à materialidade de sua existência, aos impactos sofridos com a redefinição de "mulher" para um conceito não mais atrelado a sexo, mas a algo subjetivo, autodeclatório e não verificável ("gênero").
Esse não é um problema apenas do Brasil, como é possível verificar no Anexo 1, em texto da Relatora Especial da ONU sobre violência contra mulheres e meninas, Reem Alsalem. Abaixo, alguns trechos selecionados, no original em inglês:
I am deeply concerned at the escalation of intimidation and threats against women and girls for expressing their opinions and beliefs regarding their needs and rights based on their sex and/or sexual orientation. Disagreement with the views of women/girls including politicians, academics, and women rights advocates should never be used as grounds to justify violence and intimidation.
(...)
I also note with concern the frequent tactic of smearing women, girls and their allies who hold lawful and protected beliefs on non-discrimination based on sex and same sex attraction as “Nazis,” “genocidaires” and “extremists” to intimidate women, instill fear into them and shame them into silence. They also have been made with the specific objective of inciting violence and hatred against women based on their beliefs. According to international human rights law, freedom of expression should be protected unless it incites violence and hatred. The victims of these sort of attacks on freedom of speech and expression who call for respectful and transparent discussions around the definition of “sex”,”gender” and “gender identity” and the interaction of rights derived from these for rights holders in any given society.
(...)
Measures that I find particularly concerning include reprisals such as censorship, legal harassment, loss of jobs, loss of income, removal from social media platforms, speaking engagements and the refusal to publish research conclusions and articles. These tactics have affected the ability to discuss issues related to sex, gender, and gender identity within universities and in society.
(...)
In addition, I note with concern the way in which provisions that criminalize hate speech based on a number of grounds, including gender expression or gender identity, in countries in the Global North have been interpreted. Some such provisions are being taken to mean that any interrogation of the scope of rights based on gender identity amount to hate speech against non-binary persons and perhaps even incitement of hatred and genocide.
(...)
I would like to emphasize that the rights to free expression and peaceful assembly are crucial to ensuring that societies can develop their priorities and policies democratically and balance the rights of diverse groups in a pluralistic society. Attempts to silence women based on the views they hold regarding the scope of gender identity and sex in law and in practice and the rights associated with these, severely affects their participation in society in dignity and in safety, as well as their country’s prosperity and development.
A própria Reem Alsalem teve sua visita oficial ao Brasil cancelada pelo Ministério das Mulheres por ter sido considerada "transfóbica" por conta de posicionamentos como este, em defesa da liberdade de expressão.
Em 2019, o Supremo Tribunal Federal (STF) conheceu parcialmente o pedido feito no bojo da Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO) n.º 26, decidindo pela equiparação da "homotransfobia" ao crime de racismo. O Acórdão (Anexo 2) não define as condutas que compõem o tipo penal e ressalva exclusivamente o direito à liberdade religiosa. Observa-se ainda que há embargos de declaração não julgados neste processo, que portanto ainda não transitou em julgado, não podendo ainda produzir efeitos. Apesar do inciso XXXIX do artigo 5º da Constituição Federal garantir o princípio da estrita legalidade penal, de que não há crime nem pena sem lei prévia, ou seja, que ninguém pode ser punido por um ato que não era considerado crime quando foi cometido, já ocorreram diversas condenações no Brasil por "transfobia".
Apesr disso, desde então acusações de transfobia têm servido de instrumento de silenciamento de qualquer debate acerca do tema, independente do seu conteúdo. Consolidou-se, na mídia e em redes sociais, se espalhando portanto para toda a sociedade, a máxima "transfobia é crime" como equivalente a qualquer discordância relativa a temas sobre "identidade de gênero". Mesmo em casos nos quais as acusações não são levadas ao judiciário, elas têm servido de intimidação e coação ao silêncio, com linchamentos virtuais e cancelamentos públicos que implicam muitas vezes em perda de renda e emprego, bem como de círculo social.
No restante do documento, daremos exemplos da falta de liberdade de expressão em relação à importância do marcador sexo versus "identidade de gênero", e a perseguição resultante a mulheres, em diferentes âmbitos.
Perseguição judicial
Apenas um dos inúmeros exemplos de perseguição judicial a mulheres críticas ao conceito de "identidade de gênero" e suas implicações para o conceito de "mulher" e nossos direitos, é o caso de Isabella Cêpa.
Isabella é uma mulher feminista cuja atuação em redes sociais e na sociedade civil organizada é focada no tema da violência contra mulheres, tendo ela mesma sido vítima de violência doméstica. Em 2020 ela comentou em seu perfil de rede social que "a mulher mais votada de São Paulo é homem", referindo-se a Erika Hilton, pessoa do sexo masculino que se identifica como mulher. Isabella, como milhões de outras mulheres no mundo, entendem que "homem" e "mulher" são categorias sexuais.
Ela foi prontamente acusada de "transfobia" por Hilton, que ainda selecionou mais quatro postagens da rede Twitter (atual X) que Isabella havia repostado, expandindo assim a acusação para 5 acusações de "racismo". A denúncia foi acolhida pelo Ministério Público Federal, conforme noticiado na Folha de São Paulo e no site internacional Reduxx. A pedido da justiça, sua conta de Twitter foi permanentemente banida.
Abaixo, as postagens em questão:
Duas das mulheres que escreveram as mensagens originais também foram recentemente interrogadas pela polícia.
Isabella enfrentou tamanha perseguição no Brasil que atualmente está auto-exilada em país estrangeiro não divulgado, aguardando data de audiência. Seu processo, que tramitava na esfera estadual, foi remetido à esfera federal em outubro de 2024, citando a já mencionada ADO 26.
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Outro caso digno de nota é o de E. L. C., mulher trabalhadora, mãe, de baixa escolaridade, que era prestadora de serviços terceirizados (faxineira) da Universidade Federal da Paraíba (UFPB) e está sendo acusada pelo Ministério Público de transfobia por ter dito a estudante do sexo masculino que entrou no banheiro feminino da universidade "moço, você não pode usar o banheiro feminino". O nome de quem fez a denúncia se encontra nesta reportagem e assim é possível rastrear as redes sociais para obter a seguinte imagem de Odara Moraes (nome social):
A sra. E. L. C. encontra-se desempregada desde então, há dois anos. Uma série de trabalhadores e trabalhadoras vêm perdendo seus empregos nos últimos anos, por detectar corretamente o sexo de uma pessoa e aponta-lo, no cumprimento de suas funções (seguranças de shopping, faxineiras, depiladoras de salões exclusivos para mulheres e outros).
Perseguição política
Mulheres na política também sofrem cerceamento e punição ao falarem de qualquer tema que envolva questões ligadas à "identidade de gênero", incluindo o fato de que as cotas políticas reservadas para mulheres hoje são ocupadas com base em autodeclaração de "identidade de gênero".
Um exemplo marcante é o de Raquel Marques, eleita pela REDE-SP em 2018 como co-deputada da “Mandata Ativista” do Estado de SP. Em 2021, em meio a decisões do governo que postergavam a reabertura das escolas após pandemia de COVID, Raquel publicou em seu Facebook a frase: “Queria que um dia o desrespeito à infância e adolescência ganhasse na mente da esquerda a mesma indignação que a transfobia causa”.
Após acusações de que a frase seria “transfóbica” o post foi apagado, mas isso não a livrou de ser sumariamente expulsa do mandato que exercia com sua colega de partido Claudia Visoni e com Mônica Seixas, Fernando Ferrari, Chirley Pankará e Paula Aparecida (todos do partido PSOL). Sua expulsão foi decidida pelo PSOL-SP em reunião realizada sem sua presença e comunicada em nota pública nas redes sociais do partido. Raquel Marques publicou resposta em seu Facebook:
“(...) Eles sabem muito bem que jamais tive esta intenção nas minhas postagens, uma vez que elas atentam contra a minha história, a minha militância e tudo que defendo. Esse fato é resultado de um processo de erosão da democracia que um dia sonhamos dentro deste mandato coletivo, em um projeto de poder que tem sido colocado em prática desde nossa posse por uma das correntes de dentro do PSOL a qual codeputados do mandato participam. (...) É absurda a acusação feita pela titular do mandato e é lamentável que um mandato que se apresenta como defensor da democracia, do diálogo e da coletividade recorra a métodos tão autoritários por um projeto de poder.”
Perseguição nas universidades
Diversas professoras universitárias estão sofrendo processos administrativos em suas universidades por acusações de "transfobia" que se referem a falas que são do âmbito da liberdade de expressão.
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A professora Mara Telles, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) teve que enfrentar processo administrativo por conta desta postagem em sua rede social pessoal, considerada "transfóbica":
Enquanto MATRIA, prestamos auxílio a quatro casos recentes (Mara Telles - UFMG, Ana Paula Penkala - UFPel, Jan Alyne Prado - UFBA e M. D. - UFRJ) e em todos eles, as professoras receberam ameaças de violência sexual e física por conta da suposta "transfobia", mas foram elas que foram investigadas, nunca seus agressores. Todas adoeceram e tiveram que se afastar por motivos de saúde mental.
Alunas universitárias enfrentam o mesmo problema, sendo perseguidas por postagens em redes sociais ou opiniões em sala de aula que remetam a uma concepção material do que é ser mulher, expulsas de grupos de estudos e centros universitários, impedidas de fazerem pesquisas. Em 2023, Maria Luiza Zaparolli Silva, aluna da USP - Ribeirão Preto então com 21 anos, tentou suicídio dentro do campus universitário por conta das perseguições que vinha sofrendo, sob acusação de "transfobia". Seu "crime"? Postar que “mulheres precisam de espaços só para mulheres”. Maria Luiza trancou a faculdade.
Perseguição em outros ambientes de trabalho
A defensora pública Maria Cecília Schmidt foi acusada de "transfobia" pelas seguintes postagens em sua rede social privada:
Seu órgão, a Defensoria Pública de Rondônia, aceitou representação contra ela e apenas convocou reunião de mediação na qual, conforme relato abaixo concedido à MATRIA, Maria Cecília se sentiu coagida a assinar um acordo que implicou na divulgação de uma nota de retratação com a qual ela discorda e o pagamento de R$ 30.000,00:
"Fui representada na corregedoria do meu órgão por seis coletivos LGBTs porque eu postei no meu Instagram que mulheres são as fêmeas adultas humanas e questionando a autoidentificação como vetor para acesso de pessoas a espaços exclusivos para mulheres, como banheiros e categorias em esportes. Fiquei com medo de ser exonerada pois sou mãe solo de dois. Me expuseram em jornais, na TV. Meus filhos não tinham mais paz para ir à escola, a gente estava com medo de ser atacado na rua. Exerço função pública e fiquei apavorada. Fiz um acordo com representantes assinando uma nota pública absurda, com coisas que eu não concordo e paguei 30 mil reais de compensação financeira pelas ofensas que eles dizem que fiz a comunidade passar. Minhas colegas estão com medo, eu estou com medo de falar sobre mulheres. Viver sem poder lutar, se não somos criminalizadas.”
A nota que Maria Cecília teve que assinar:
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No Anexo 3, consta que o valor pago seria para aluguel de uma sede para as organizações denunciantes, o que, segundo Maria Cecília, ainda não aconteceu.
No Anexo 4, encaminhamos mapeamento que a coletiva Correnteza Feminista realizou junto a 366 mulheres a respeito de perseguições semelhantes, indicando um problema sério de liberdade de expressão para as mulheres.
Governo
O governo brasileiro tem avançado com alterações que vão desde a linguagem em sua comunicação oficial (se referindo a mulheres como pessoa que gesta, pessoa que pariu) à inclusão de pessoas do sexo masculino em espaços como as Casas da Mulher Brasileira, que acolhem mulheres em situação de vulnerabilidade, com suas crianças. Em meio a tudo isso, se recusa a dialogar com mulheres que são contrárias a tais medidas: apesar das inúmeras demandas, a MATRIA jamais foi recebida pelo Ministério das Mulheres ou pelo Ministério dos Direitos Humanos, que respondeu oficialmente considerar "infrutífero qualquer convite ao debate" (o mesmo se aplica a outros grupos de mulheres críticas).
O Ministério das Mulheres se recusa a debater o tema, não dialoga com grupos de mulheres que desde o começo deste governo solicitam audiência para falar dos impactos negativos de políticas com base em "identidade de gênero" e exclui tais grupos das construções que realiza com a sociedade civil. O Ministério se recusa a definir oficialmente o conceito de mulher com o qual trabalha para fins de políticas públicas, pois sabe não apenas que não corresponde à visão da maioria esmagadora das mulheres do país, a quem deveria representar, mas também por não haver normativa para a inclusão de pessoas do sexo masculino na categoria "mulher". Na verdade, o oposto é verdade: apesar de sempre citado como documento mais importante para a implementação de políticas com base em identidade de gênero, os "Princípios de Yogyakarta" são o resultado de uma reunião da sociedade civil, sem qualquer adesão oficial por parte de Estados ou força de lei. Já o marcador sexo está definido legalmente, a nível nacional e internacional, através, por exemplo, da CEDAW: a Convenção para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, ratificada pelo Brasil. Apesar disto e da existência de uma Secretaria LGBT dentro do Ministérios dos Direitos Humanos e da Cidadania, o Ministério das Mulheres obviamente inclui pessoas do sexo masculino em suas políticas, o que também foi confirmado em fala de ex-assessora do Ministério, vazada em redes sociais. Em linha com o silenciamento aqui relatado, a imprensa não noticiou tal vazamento, como não noticia os questionamentos de grupos de mulheres, as denúncias ou qualquer outra coisa que possa jogar uma luz negativa sobre o tema de "identidade de gênero".
Apesar de se dizer preocupado com as fake news, o governo propaga constantemente afirmações comprovadamente inverídicas e que, de tanto repetidas pelas mídia e pelo governo, são tomadas pela população como verídicas e reforçam a perseguição a mulheres que se expressam a respeito da importância do marcador "sexo" para seus direitos. Questionados a esse respeito, mais de uma instância do governo e do Estado responde apenas que opta por acreditar nas afirmações de certas organizações em detrimento de outras, sem preocupação com verificação de metodologia ou dados que embasam tais afirmações.
Dois exemplos:
Conselho Nacional de Justiça: https://www.associacaomatria.com/post/conselho-nacional-de-justi%C3%A7a-se-recusa-a-tirar-fake-news-do-ar
Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania (MDHC): https://www.associacaomatria.com/post/mdhc-escolhe-a-mentira
Em ambos os casos, a MATRIA encaminhou documentação comprovando que as afirmações de que "o Brasil é o país que mais mata pessoas trans" e "a expectativa de vida da população trans é de 35 anos", repetidas ad infinitum por mídia e governo não se sustentam e apenas servem para constranger e silenciar mulheres que desejam debater o tema. No anexo 5, relatório escrito pela MATRIA apresenta detalhadamente comprovação de que não se pode afirmar essas narrativas.
As centenas de casos de perseguição de que temos notícias, apresentados através dos poucos relatos acima, servem de aviso às demais mulheres, que estão devidamente advertidas sobre as consequências de se expressarem a respeito de suas realidades enquanto mulheres em uma sociedade machista.
É inaceitável que a liberdade de expressão, de crença, de cátedra e inclusive de ir e vir esteja sendo negada a mulheres dessa forma.
Por isso, pedimos que acolham nossa denúncia e recomendem ao governo brasileiro medidas enérgicas a fim de garantir que mulheres possam se expressar em defesa de sua classe sexual.
Estamos à disposição para maiores informações sobre os casos relatados acima e outros acontecimentos dignos de nota para o tema, bem como para audiência com a Relatoria, caso assim o desejem.
Atenciosamente,
Diretoria da MATRIA