Gastos obscuros, nomeações irregulares, falta de evidências científicas e conflitos de interesse põem em risco a saúde de crianças e adolescentes no programa lançado pelo Ministério da Saúde em dezembro de 2024
A MATRIA - Associação de Mulheres, Mães e Trabalhadoras do Brasil, após análise de documentos obtidos via Lei de Acesso à Informação, revela que o programa de Atenção à Saúde da População Trans, conhecido como PAES Pop Trans, está cheio de irregularidades. Lançado em dezembro de 2024, o programa não possui portaria de nomeação dos membros do Grupo de Trabalho responsável, gastou R$ 250 mil em reuniões com esse grupo não oficial e planeja gastar R$ 443 milhões até 2028.
Além disso, a "Síntese de evidências", que deveria ser produzida necessariamente antes da criação do programa, foi postergada para depois que o programa já estiver em funcionamento. Isso contraria tanto os protocolos científicos como as declarações da diretora do programa, Flávia Teixeira, que assegura que o programa foi baseado em evidências. A MATRIA denuncia a irresponsabilidade do governo federal com a ciência, a saúde e o dinheiro público, e critica a falta de dados, o desrespeito à ética e os graves riscos à saúde das crianças e adolescentes brasileiros.
O PAES Pop Trans
Em dezembro de 2024, Flavia Bonsucesso Teixeira anunciou, em entrevista à Folha de São Paulo, que o Ministério da Saúde ampliaria o rol de procedimentos do chamado “processo transexualizador”, realizado pelo SUS. Flávia seria a diretora do Programa de Atenção à Saúde da População Trans, conhecido como PAES Pop Trans.

O artigo da Folha informava que o Programa foi “Resultado das atividades do Grupo de Trabalho (GT) de Revisão do Processo Transexualizador no SUS, instituído em 2023”. E acrescentava que “O Paes Pop Trans apresenta avanços significativos em relação às portarias que regulamentavam os serviços prestados pelo Sistema Único de Saúde (SUS) e propõe o acompanhamento à população trans em todo o seu ciclo de vida”.
Essa última expressão diz respeito a crianças e adolescentes, pois o Programa reduz todas as idades de hormonização e cirurgias e libera o uso dos chamados "bloqueadores de puberdade" fora de protocolos de pesquisa. Apesar de os bloqueadores serem aplicados "aos primeiros sinais de puberdade", ou seja, às vezes tão cedo quanto 9 anos de idade, Flávia repete a já conhecida narrativa de que não existe nenhum processo de hormonização ou intervenção física no corpo de crianças.


Essa afirmação é simplesmente falsa, já que os bloqueadores de puberdade são hormônios sintéticos análogos ao hormônio gonadotrofina (GnRH) e afetam de forma irreversível o desenvolvimento físico e cognitivo de crianças e adolescentes.
Ao ter conhecimento dessa notícia, a MATRIA enviou dois pedidos ao Ministério da Saúde, via Lei de Acesso à Informação, solicitando as seguintes informações:
Ausência de portaria de designação
A resposta da Secretaria de Atenção Especializada à Saúde foi extremamente preocupante, em vários níveis.
Ela reconheceu que não houve uma portaria de designação formal dos membros do Grupo de Trabalho. Em vez disso, a escolha dos membros do GT foi feita por meio de um simples ofício, que não tem o mesmo valor legal e formal de uma portaria. Esse vício inicial invalida todo o trabalho subsequente.
Esmiuçando o caso, a secretaria instituiu Grupo de Trabalho através de uma Portaria genérica, "para revisão do processo transexualizador no Sistema Único de Saúde - SUS", indicando as instâncias e organizações participantes. Porém, além de não justificar a escolha de cada uma delas, a Secretaria contornou a exigência de nomear os representantes de cada organização no GT.
A nomeação por Portaria é fundamental porque está atrelada à exigência, entre outras coisas, de que cada membro assine uma declaração garantindo que não existe conflito de interesse entre sua atuação profissional e a participação no GT.
A lista de participantes a que tivemos acesso mostra o exato oposto da ausência de conflitos de interesse: além de incluir até pessoas cuja qualificação é ser estudante de medicina, várias delas têm trabalhos que dependem diretamente da expansão das políticas que o Grupo de Trabalho propõe. A lista inclui políticos, ativistas de ONGs, doutorandos da área de humanidades, membros de coletivos universitários, estudantes de medicina, pessoas sem órgãos especificados na documentação e pessoas da área médica que atuam com serviços diretamente ligados ao processo transsexualizador. Ou seja, no mínimo seria necessário averiguar se tais pessoas têm condições de formular uma avaliação imparcial e desinteressada dessas políticas.
Indicações de nomes apenas por ofício não são oficiais e por isso não saem no Diário Oficial da União. Sendo assim, elas não atendem ao princípio de transparência ao qual o governo está submetido. Ademais, como os convites foram feitos diretamente a pessoas - e não a órgãos e instituições - fica a dúvida: durante os trabalhos do GT, elas estão ali na condição de representantes desses órgãos, ou apenas expressando sua opinião pessoal?
Gastos injustificados
A resposta também mostrou que o gasto com passagens e diárias para duas reuniões desse GT não oficial chegou a quase 250.000,00 reais. Valor irrisório, claro, perto dos 443 milhões que o governo desembolsaria com o Programa até 2028, segundo a reportagem.
Representantes irregulares
A partir da resposta enviada pelo Ministério da Saúde, observamos também que os representantes do Ministério presentes no Grupo de Trabalho são consultores contratados via organismos internacionais e bolsistas contratados via instituições federais. Em outras palavras, são profissionais não concursados. Esse tipo de prática é irregular e já foi alvo de ação civil pública do Ministério Público Federal. A Recomendação número 9/2012 do MPF ao Ministério da Saúde aponta que essas pessoas não podem desempenhar esse papel. Isso porque, na prática, significa que a mão de obra técnica é substituída por ativistas.

Falta de evidências para subsidiar o PAES Pop Trans
Por fim, e não menos importante, a resposta à LAI afirma que a “Síntese de evidências” será feita depois - e não antes - da criação do programa, em uma inversão inadmissível da ordem e rigor científicos. Essa informação está em direta contradição com as declarações de Flávia Bonsucesso Teixeira, que alegou que o Ministério segue "evidências científicas e protocolos internacionais".

A síntese de evidências deve obrigatoriamente ser elaborada antes da publicação da Portaria que vai instaurar um Programa. O Guia Orientativo de Análise de Impacto Regulatório da Secretaria de Atenção Especializada à Saúde é claro ao estabelecer que as evidências científicas devem ser colhidas para elaboração da AIR, passo anterior, portanto, à elaboração de qualquer programa.
A realização de Análise de Impacto Regulatório (AIR) é obrigatória, conforme Decreto n.º 10.411/2020. O Grupo de Trabalho, nesse caso, produziu o AIR sem que fizesse antes a síntese de evidências necessária.


Ideologia e descaso com a ciência
Pode parecer para o leigo que esses são apenas detalhes burocráticos, mas não são. Tudo isso mostra mais uma vez os já conhecidos problemas com todos os processos que envolvem o transgenerismo: falta de dados, desrespeito à ética, negligência e relativização do processo científico.
Nesse caso, trata-se de um descaso gravíssimo com a saúde das crianças e adolescentes, resultado de um alinhamento ideológico do Ministério da Saúde com perspectivas negacionistas e anti-científicas. Não custa enfatizar que o Ministério instituiu um programa de abrangência nacional, orçamento elevado e, o que é mais importante, impactos irreversíveis sobre a saúde dos usuários sem seguir os princípios da administração pública e os protocolos científicos mais básicos.
As respostas que a MATRIA obteve através de pedido de acesso à informação são um escândalo que demonstra a irresponsabilidade do governo federal com a ciência, com a saúde, com o dinheiro do povo e, principalmente, com o grupo vulnerável de crianças e adolescentes.
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