"É impossível lutar contra a opressão se não há opressores nomeáveis."
Mary Daly
A apropriação da palavra "mulher" para afirmar o seu oposto e a dissolução das leis em referência à mulher são um projeto. A substituição da definição de mulher para uma noção circular, mulher como quem se define mulher, é um obscurecimento de nossa realidade material. Quando não pudermos mais nos nomear, como vamos poder dizer quem violenta e quem é violentado? Como vamos lutar por leis específicas para a condição de mulher? Como proteger? Como libertar?
Conforme ponderações da Campanha pelos Direitos Humanos das Mulheres Baseados no Sexo da WDI - Brasil, as políticas de auto identificação apóiam-se largamente nos citados Princípios de Yogyakarta, documento que não tem força legal e não constitui um tratado internacional.
A Conferência sobre a Mulher da ONU, em Pequim, 1995, considerou uma "inovação de grande potencial transformador na luta pela promoção da situação e dos direitos da mulher" junto com a noção de empoderamento e o enfoque da transversalidade (ONU, 1995, pg. 149). Em 2006 surgiu os Princípios de Yogyakarta, documento considerado crucial para políticas de auto identificação baseadas em gênero, em substituição ao sexo, onde lê-se:
"Compreendemos identidade de gênero a profundamente sentida experiência interna e individual do gênero de cada pessoa, que pode ou não corresponder ao sexo atribuído no nascimento, incluindo o senso pessoal do corpo (que pode envolver, por livre escolha, modificação da aparência ou função corporal por meios médicos, cirúrgicos ou outros) e outras expressões de gênero, inclusive vestimenta, modo de falar e maneirismos."
Os princípios de Yogyakarta não têm força legal e não constituem um tratado internacional, porém são amplamente utilizados como referência e subsídio para o que tem sido compreendido como gênero e políticas para mulheres. Tais princípios
"não criam obrigações vinculativas para os Estados, nem são uma fonte de obrigações internacionais de direitos humanos para os Estados, particularmente porque são cada vez mais citados como uma razão para defender processos irrestritos de autoidentificação e políticas de identidade de gênero". (ONU, 2023)
Exemplos de como as políticas foram sendo alteradas de forma a produzir a inclusão do termo gênero em substituição ao sexo podem ser verificados em observância à pouca consideração do Estado pela CEDAW - Convenção sobre Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher:
Para os fins da presente Convenção, a expressão "discriminação contra a mulher" significará toda a distinção, exclusão ou restrição baseada no sexo e que tenha por objeto ou resultado prejudicar ou anular o reconhecimento, gozo ou exercício pela mulher independentemente de seu estado civil com base na igualdade do homem e da mulher, dos direitos humanos e liberdades fundamentais nos campos: político, econômico, social, cultural e civil ou em qualquer outro campo. (CONVENÇÃO, 2021)
A CEDAW é uma convenção assinada pelo Estado Brasileiro mas que não tem sido considerada no debate e produção de políticas públicas. O documento é orientado pelo marcador sexo, o que também se deve ao fato de que, na década de 70, o debate sobre gênero estava em uma direção oposta ao que emergiu e o suplantou na década de 90. O debate em torno do gênero, pela segunda onda feminista, caminhava em uma direção de sua abolição, no sentido de criticar os papéis de gênero atribuídos por base no sexo das pessoas. O lastro dessa mudança recente na história foi descrito por Sánchez (2022), no artigo intitulado "As três fases do apagamento jurídico das mulheres" em que ela indica como a primeira fase o que ocorreu com a CEDAW:
Por ejemplo, la CEDAW de 1979, la Convención más importante, señala que las mujeres son discriminadas por razón de sexo. Lo mismo ocurre con la «Declaración sobre la eliminación de la violencia contra la mujer» de 1993, que se basa en la categoría jurídica «sexo» Sin embargo, a partir de los años noventa y la primera década del nuevo milenio, empieza a aparecer una nueva terminología en el derecho: la Conferencia Mundial de la Mujer celebrada en Pekín en 1995 consagra jurídicamente los términos «perspectiva de género» y «violencia de género
Ora, a violência sexual masculina, que subjuga as mulheres em todas as esferas da sociedade, desde o âmbito privado até a esfera pública, não é subjetiva: é material, sistemática e repousa sobre uma diferença anatômica, portanto biológica, que não deriva de uma "percepção íntima e individual" das mulheres. Igualar nossa realidade material a uma "experiência sentida" de homens que "se percebem" mulheres reduz a raiz social desta desigualdade à categoria de fantasia. Se um movimento declara que aos homens é permitido definir o que é ser mulher através de seus sentimentos, mas que a uma mulher não é permitido definir o que é ser mulher a partir de sua realidade material, eis um movimento pelos direitos dos homens.