Em 01/03/2024, primeiro dia do que se convencionou chamar de "Mês das Mulheres", o perfil de Instagram do Tribunal Superior Eleitoral publicou logo pela manhã a seguinte postagem, apagada pouco depois:
Um grande número de comentários apontou o enorme desrespeito de uma postagem que fala da baixa representatividade de mulheres nos cargos eletivos e é ilustrada por foto de pessoa do sexo masculino.
O objetivo da postagem, diga-se de passagem, é pouco claro, dado que compara a baixa representativa de mulheres na política a conquistas de direitos, apesar das mulheres brasileiras já possuírem oficialmente o direito de serem eleitas desde 1932 (antes mesmo disso, em 1929, Alzira Soriano havia sido eleita prefeita de cidade no RS).
O real problema, como em tantas outras esferas relativas a mulheres, passa pela dificuldade de transformar direitos legais em mudanças sociais e culturais, dada a misoginia prevalente na nossa sociedade.
A postagem do TSE apenas reforça tal misoginia, ao apregoar que ser mulher estaria relacionado a usar brinco e maquiagem e, ainda mais grave diante da constante sexualização das mulheres e suas consequências, a desnudar o corpo em situação na qual um homem, buscando posição política e de poder, jamais o faria.
Na história mais recente do país, algumas tentativas de reparação da desigualdade entre homens e mulheres na política vêm sendo feitas, como a cota de candidaturas de mulheres, trazida pela "Lei das Eleições" (Lei n.º 9.504, de 1997):
Art. 10
§ 3º Do número de vagas resultante das regras previstas neste artigo, cada partido ou coligação preencherá o mínimo de 30% (trinta por cento) e o máximo de 70% (setenta por cento) para candidaturas de cada sexo. (grifo constante no original).
A promulgação da Lei não proporcionou o aumento esperado no número de mulheres eleitas, pois os partidos podiam lançar candidatas sem qualquer apoio interno ou financeiro e, portanto, sem chance real de se eleger.
Além disso, inicialmente não havia punição para partidos que não cumprissem a cota. Mesmo após a definição de sanções para estes casos, segue em debate até a presente data proposta de anistia aos partidos que descumprem as regras das cotas para mulheres.
Visando tornar as cotas mais efetivas, em 2018 o STF decidiu, na ADI n.º 5617, pela obrigatoriedade dos partidos em destinar 30% do fundo partidário recebido a candidaturas de mulheres.
Neste mesmo ano, o Acórdão TSE de 01.03.2018, em resposta à consulta 60405458, feita por Senadora do Partido dos Trabalhadores (Fátima Bezerra, hoje Governadora do Rio Grande do Norte), adotou a orientação de que:
A expressão “cada sexo” mencionada no art. 10, § 3º, da Lei nº 9.504/97 refere-se ao gênero, e não ao sexo biológico.
Ou seja, para fins de cotas políticas, no momento em que estas finalmente passam a ter chances de serem efetivas, "mulher" passa a ser algo meramente autodeclaratório, ideia também expressa pela postagem do TSE que é objeto desta Nota de Repúdio.
Na eleição seguinte às mudanças acima relatadas, tivemos pessoa do sexo masculino autodeclarada "mulher" eleita em Belo Horizonte como “vereadora mais votada da história da capital mineira” e pessoa do sexo masculino autodeclara "mulher" eleita em São Paulo como “a mulher mais votada para vereança em São Paulo”, entre outras pessoas do sexo masculino eleitas nas cotas de mulheres.
Estas mesmas pessoas foram eleitas em cotas de mulheres para a Câmara dos Deputados em 2022, sendo Duda Salabert "a deputada federal mais bem votada da história de Minas Gerais", enquanto Erika Hilton ocupou uma das 14 posições que foram preenchidas por mulheres em SP, (3º lugar). Matérias de jornal sobre o tema apresentam sempre as pessoas do sexo masculino autodeclaradas "trans" eleitas nas eleições de 2022, sem menção a pessoas do sexo feminino que se autodeclarariam deste grupo, que por não se beneficiarem de cotas, apesar de seu sexo, aparentemente não foram eleitas.
Uma parte das pessoas autodeclaradas "trans" no país alteram seus nomes no registro civil, não usando mais o chamado "nome social", portanto os dados a seguir, retirados no site do TSE, são apenas parciais, dado que tratam unicamente de candidaturas nas quais foi utilizado nome social (candidaturas de pessoas que não haviam alterado seu registro civil).
Mas a estatística é interessante para demonstrar que a maioria esmagadora das candidaturas nesta situação é de pessoas do sexo masculino que se autodeclaram "mulheres", se beneficiando portanto das cotas reservadas a mulheres:
Em 2018, 28 das 29 candidaturas nas quais se usou nome social foram de pessoas do sexo masculino que se autodeclararam do "gênero feminino", ou seja 96,5% das candidaturas.
Em 2020 (eleições municipais), 140 das 171 candidaturas nas quais se usou nome social foram de pessoas do sexo masculino que se autodeclararam do "gênero feminino", ou seja 81,9% das candidaturas.
Em 2022, 30 das 37 candidaturas nas quais se usou nome social foram de pessoas do sexo masculino que se autodeclararam do "gênero feminino", ou seja 81,1% das candidaturas.
Não parece, no entanto, haver qualquer preocupação com fraudes na autodeclaração de "identidade de gênero" para fins das cotas reservadas a mulheres, ao contrário do que vimos nas eleições de 2022 em relação à autodeclaração racial.
Na primeira eleição na qual os partidos foram obrigadas a distribuir o fundo partidário e o tempo de propaganda eleitoral de forma proporcional entre brancos e negros, muito se falou em fraude, "afroconveniência" e "oportunismo eleitoral" dos candidatos, com menção inclusive a punir fraudadores por falsidade ideológica.
Impossível não observar a diferença brutal dada à questão no que diz respeito às cotas para mulheres, para as quais a única fraude que se menciona é a de candidaturas fictícias.
Por pressão popular, a postagem misógina do TSE foi deletada e substituída por nova versão, com mesmo texto mas fotos de uma mulheres, formando trio de postagens fixadas na página, para o mês das mulheres:
Embora seja positivo que o órgão tenha voltado atrás diante do posicionamento das mulheres em sua página de Instagram, é extremamente preocupante que tenha considerado adequado falar da baixa representatividade de 52% da população brasileira apagando mulheres.
Embora não existam estatísticas oficiais sobre a população autodeclarada "trans" no Brasil, conforme apresentado no Relatório "Falsas afirmações sobre a população autodeclarada "trans" no Brasil", uma estimativa existente aponta algo em torno de 2% da população brasileira.
Assim, perguntamos por que um órgão público decide representar 52% da população brasileira, no mês dedicado a relembrar suas lutas e as muitas desigualdades ainda vigentes, com imagem de pessoa pertencente a grupo que, estima-se, representaria 2% da população?
Mais preocupante ainda é a erosão que o conceito abstrato e não científico de "identidade de gênero" tem promovido nos direitos das mulheres em todas as áreas, incluindo na da legislação eleitoral. Sendo uma autopercepção, totalmente autodeclaratória, sem nenhum marcador objetivo, a "identidade de gênero" é inquestionável, inverificável e portanto infalsificável. Isso efetivamente torna a reserva de cotas para mulheres nas eleições inócua, podendo no limite termos 100% das candidaturas "de mulheres" ocupadas por pessoas do sexo masculino que se autodeclarem "mulheres".
O TSE conclui, corretamente, que "uma realidade igualitária e representativa traz benefícios para toda a sociedade". A MATRIA afirma que tal realidade só é possível se mulheres são consideradas seres humanos completos e não um conjunto de estereótipos que pessoas do sexo masculino poderiam adotar, um sentimento, uma ideia, uma autodeclaração.
Assim, repudiamos a erosão de nossos direitos e a invasão de nossos espaços, na política como em outras esferas, e seguiremos lutando pelo avanço dos direitos de meninas e mulheres com base na nossa condição sexual, origem das opressões e desigualdades milenares que sofremos.