A diferença entre publicidade e propaganda é um tanto turva até para os mais experientes pesquisadores e profissionais da área. A diferença entre jornalismo e propaganda, no entanto, sempre pareceu evidente mesmo aos olhos menos treinados. Mas, será mesmo?
Tomemos como exemplo a reportagem do especial de domingo da GloboNews sobre a clonagem de animais. A linha fina afirma que “iniciativas ajudam quem não quer dizer adeus aos seus animais de estimação”. Não é preciso muito esforço interpretativo para observar que a editoria é favorável à clonagem de animais, ainda que o debate sobre o tema não esteja suficientemente esgotado do ponto de vista ético – para dizer o mínimo. A esse tipo de aconselhamento, chamamos, propaganda.
Um fenômeno semelhante tem acontecido de forma reiterada com a cobertura jornalística a respeito do que se convencionou chamar transativismo. Embora saibamos que o jornalismo profissional deve estar sempre atento aos dados e que seu compromisso com a utopia da imparcialidade o coloca em lugar privilegiado para analisar os fatos “despido dos ídolos”, não é isso que vêm nos mostrando as matérias e análises empreendidas pelo jornalismo profissional quando o assunto envolve questões trans.
Para começar, vamos lembrar que dados são bons, mas contexto é melhor ainda. Corre na imprensa de forma bastante veloz a informação de que o Brasil foi “eleito” pelo 16º ano consecutivo como o país que mais mata pessoas trans. Infelizmente, sabemos que não há nenhuma surpresa em identificar assassinatos em nosso país e que todas as mortes são lamentáveis.
No entanto, os dados são divulgados sem os seus balizadores:
não sabemos quais países participam da pesquisa (será mesmo que o Brasil mata mais trans do que os lugares onde a homossexualidade e a transsexualidade são consideradas crime com pena de morte, como no Afeganistão?);
não sabemos também as circunstâncias nas quais essas mortes ocorreram porque, certamente, não é “o país” quem mata, mas sim, as pessoas, e interessaria saber de onde parte essa violência (podemos supor que é violência masculina, mas, vamos lhes dar o benefício da dúvida);
por último, não sabemos exatamente como esses dados foram coletados, já que, no Brasil, a pessoa trans pode mudar seu nome de registro e sexo na certidão de nascimento, dificultando, portanto a aferição. Essa população também nunca foi alvo de um Censo oficial. Sobre este tema, a MATRIA já publicou um Relatório.
Em recente matéria do Jornal Nacional (24/01/2024) cuja manchete no Globoplay é “Trump determina que mulheres trans presas cumpram pena em prisões para homens” o jornalista toma a decisão de apresentar a questão pela lente das mulheres trans. Porém, a determinação do presidente americano pode ser observada por uma lente mais ampla (mais imparcial, talvez?), pois ela não é um ataque direcionado exclusivamente às mulheres trans em condição carcerária. Ela diz respeito, de forma mais abrangente, à garantia dos espaços separados por sexo. Pode não ser interessante lembrar, mas o grupo de homens trans também seria impactado por essa medida.
O que nos leva a duas reflexões possíveis: a primeira, mais improvável, nos faz pensar que não há um grande número de homens trans presos nos EUA que tenha merecido a atenção do jornalista brasileiro ao fabricar sua manchete; e a segunda é a de que não há nenhum interesse em colocar uma população de anatomia de mulher biológica encarcerada no mesmo presídio no qual estão os homens – podemos supor os motivos, já que muitos deles foram presos por violências sexuais. Do outro lado, temos pessoas do sexo masculino autoidentificadas como mulheres trans, querendo ocupar os espaços femininos nos presídios.
Não seria incoerente levantar a hipótese de que as mulheres encarceradas (e as agentes penitenciárias) também não gostariam de conviver em regime prisional com essas pessoas de anatomia masculina pelos mesmos motivos que levam os homens trans a optarem por permanecer no presídio feminino? Já existem precedentes. Mas, convenhamos, esse tipo de manchete, atenta à violência contra às mulheres (nos presídios, ainda por cima!), nunca faria ninguém ganhar 1 clique sequer no streaming ou nos cortes das redes sociais. A esse tipo de abordagem que, por decisão discursiva, induz o expectador ao erro de interpretação, chamamos propaganda enganosa.