Na semana passada o Supremo Tribunal Federal (STF) deferiu a aplicação das medidas protetivas da Lei Maria da Penha (LMP) a homens em relações homoafetivas e também a travestis e transexuais.
Essa decisão recente é emblemática: os ataques à Lei Maria da Penha representam, de forma mais ampla, o que vem acontecendo com os direitos das mulheres. Se até recentemente os ataques eram explicitamente revestidos de misoginia e associados à extrema-direita ou a redpills, nesse momento vemos investidas ardilosas acontecendo em nome do progressismo, vindo do campo de uma esquerda igualmente extremista.
A Lei Maria da Penha, criticada desde sua promulgação por aqueles que acusam as mulheres de instrumentalizar violências sofridas a seu favor ou que acham que igualdade de direitos deveria implicar em leis estritamente iguais para todos, acaba de receber o golpe final, pasmem, em nome de uma suposta proteção a minorias.
Decisões como a tomada pelo STF, mesmo que ocorressem no fórum adequado do legislativo, precisam ser construídas com base em diagnósticos precisos, dados empíricos e estudos de impacto. Nada disso aconteceu no julgamento do Mandado de Injunção (MI) 7452, impetrado pela Aliança Nacional LGBTI e pela Associação Brasileira de Famílias Homoafetivas (ABRAFH), no qual o STF decidiu estender as proteções da LMP a outros grupos.
Vejamos o caso de travestis e transsexuais. Será que a natureza do seu problema é a mesma que motivou a sanção da Lei Maria da Penha? O tribunal perguntou se as medidas protetivas da LMP fazem sentido nestes casos? Avaliou os impactos de abarcar novos grupos nas políticas públicas e protocolos já existentes, criadas para efetivar a LMP? Para responder a essas perguntas, vamos analisar os dados do Disque 180 do segundo semestre de 2023.
Dados do Disque 180: as diferenças entre as mulheres e as pessoas transgênero, transsexuais e travestis
O Disque 180 é a Central de Atendimento à Mulher, que oferece apoio e orientações em casos de violência contra a mulher. Pessoas transidentificadas já ligam para o Disque 180, assim como para o Disque 100. Os dados são públicos, mas, infelizmente, não permitem determinar se as pessoas que fazem as ligações se identificam como mulheres trans ou homens trans. Isso significa que entre os denunciantes registrados como transgênero, há inclusive pessoas transidentificadas do sexo feminino.
No Disque 180, pergunta-se o gênero e orientação sexual da vítima - e esta inclui as opções "heterossexual", "bissexual", "lésbica", "outros" e "transgênero, transsexual e travesti" (TTT). A confusão entre sexo e gênero, assim como entre identidade de gênero e orientação sexual não é fortuita. Embora seja incentivada por grupos transativistas, essa mistura de conceitos não é realmente benéfica para ninguém, pois atrapalha a coleta adequada de dados, necessária para formular diagnósticos corretos e subsidiar boas políticas públicas para todas as pessoas - em especial permitindo a diferenciação das pessoas do sexo feminino transidentificadas daquelas do sexo masculino, visto que são dois grupos marcadamente diferentes.
A comparação entre os motivos das ligações ao Disque 180 pode nos dar pistas sobre os reais problemas enfrentados por diferentes grupos sociais. Esse tipo de informação deveria interessar aos próprios grupos transativistas, mas raramente recebe sua atenção. Em vez de olhar para os indicadores empíricos da realidade do seu grupo, essas ONGs têm preferido fabricar dados falsos e obstruir o debate apoiado em evidências.
Os dados do Disque 180 comprovam as naturezas diferentes das violências que atingem mulheres e TTTs. As mulheres ligam para reportar violência física com quase o dobro da frequência (28% das ligações) do que as pessoas TTT (18%). TTTs, por sua vez, reportam mais violação à igualdade (10% das ligações de TTTs contra apenas 1% das ligações das mulheres).
Os dados também permitem saber qual foi o tipo de violação à integridade psíquica reportado pelas pessoas que ligaram. Considerando todos os casos de violação reportados, identificamos que as mulheres reportam mais frequentemente ameaças e coações, enquanto TTTs reportam mais constrangimento e exposição.
Os dados do Disque 180 mostram também que a mulher tem quase 3 vezes mais chances de estar em risco de morte iminente do que transsexuais, transgêneros e travestis que ligam para o Disque 180 (1,7% das ligações das mulheres contra 0,6% das ligações de pessoas TTTs apresentam essa característica). O local da violação também mostra outra diferença: a mulher tem o dobro de chances de estar na casa do suspeito ou de morar com ele (44,2% das mulheres que ligaram estavam nessa situação, contra 22,5% TTTs).
As mulheres, aliás, são muito mais violadas pelos namorados, companheiros e esposos: é um percentual de 29,1% dos casos que motivaram as ligações, comparado a apenas 2,9% no caso dos TTTs. Transsexuais, transgêneros e travestis relatam mais violações de desconhecidos (9%) comparado às mulheres (2,7%). Isso tudo mostra que a vulnerabilidade da mulher está mais ligada às relações íntimas - precisamente o que inspirou o espírito da Lei Maria da Penha em primeiro lugar.
Ademais, TTTs reportam mais violações ocorridas em estabelecimentos comerciais, instituições de ensino, local de trabalho e via pública do que as mulheres. Além disso, reportam o dobro de casos em que a violação ocorre na internet: 8,7% dos casos de TTTs contra 4,4% das mulheres. TTTs se queixam mais da própria mãe (9,4%), prestadores de serviços (5,7%), vizinhos (12%) e tios (5,6%). Para as mulheres, esses percentuais são apenas 2,8%, 1,3%, 6,7%, 0,9%, respectivamente. Ao checar os dados das ligações feitas por TTTs para o Disque 100, não identificamos diferenças significativas em relação aos dados do Disque 180.
A explicação para as diferenças é simples. Grande parte das mulheres são mães e convivem com os agressores em uma condição específica e muito delicada, que influencia a sua permanência em relações violentas. Por serem as protetoras de seus filhos, elas possuem um tipo de relação muito particular com seus agressores. Além disso, mulheres muitas vezes têm dependência financeira em relação aos companheiros, o que frequentemente não se verifica no caso de TTTs ou de casais homoafetivos do sexo masculino. Finalmente, as diferenças médias de força física marcam essas relações, pois os homens, se quiserem, podem usar da força superior para coagir as companheiras.
Por tudo isso, as chances das mulheres de deixar o lar conjugal e livrar-se da relação são consideravelmente mais limitadas do que as de pessoas de outros grupos sociais. Os dados do Disque 100 e do Disque 180 são muito contundentes em mostrar que a violência contra a mulher está mais ligada a relações íntimas e situações domésticas, enquanto TTTs relatam mais violações em locais públicos, internet e por desconhecidos.
Principais diferenças nos tipos de violação reportados ao Disque 180 por mulheres e TTTs

Da violência intramasculina
É por tudo isso que afirmamos que a razão da existência da Lei Maria da Penha, ou seja, a sua mens legis, decorre da violência sofrida por conta de uma vulnerabilidade física muito específica e muito diferente de quaisquer outras formas de violência intramasculina. Infelizmente, com essas decisões recentes, o STF e o STJ estão incluindo formas de violência intramasculina indevidamente em uma lei que visa tão-somente a coibir a violência sofrida por mulheres, compreendidas em suas especificidades.
Dos Recursos Públicos
Ainda há que se falar que recursos públicos que deveriam ser destinados às mulheres vêm sendo reduzidos para atender a outros grupos. Isso tem ocorrido a despeito da epidemia de abusos e de importunações sexuais, estupros, violência doméstica e de feminicídios que atingem as mulheres. A condição de vulnerabilidade de mulheres e de meninas no Brasil é comprovada por levantamentos realizados por entidades oficiais e por institutos de credibilidade reconhecida, como o Atlas da Violência, desenvolvido pelo IPEA e pelo Fórum de Segurança Pública. Isso deveria ser motivo suficiente para coibir o desvio, para outros fins, dos parcos recursos destinados a elas.
A destinação de recursos públicos, sem previsão legal que a autorize, a minorias do sexo masculino, termina por drenar recursos já escassos, tais como aqueles destinados à manutenção, por exemplo, da Patrulha Maria da Penha, das casas de abrigamento e das delegacias especiais das mulheres. Cabe aqui lembrar que recentemente o governo decidiu recepcionar transsexuais e travestis na Casa da Mulher Brasileira, desvirtuando um serviço público que oferece apoio a mulheres em situação de violência. Dividir esses recursos para casos de outra natureza acaba sendo uma forma de enfraquecer a defesa de mulheres e de meninas no Brasil e de colocar mulheres em risco de revitimização.
Do Ministério das Mulheres
Temos visto o Ministério das Mulheres destinando tempo e recursos públicos para atender a demandas de travestis e de homens autoidentificados como mulheres. Essas demandas poderiam estar sendo atendidas pela Secretaria LGBT, alocada no Ministério dos Direitos Humanos de Cidadania (MDHC), que se destina a tratar de questões específicas desse grupo. Até mesmo em benefício dessas pessoas, seria importante observar as diferentes funções e expertises desses ministérios e basear as políticas públicas em dados reais.
Porém, por uma evidente lógica de demarcação de território e de usurpação dos recursos destinados às mulheres, estão impondo que o único Ministério encarregado de atender a mais de 50% da população brasileira passe a atender às exigências de um grupo que representa menos de 1% da população brasileira e que é, basicamente, composto por pessoas do sexo masculino autodeclaradas mulheres.
Da eliminação de quaisquer leis específicas para mulheres
Quando uma lei criada para a proteção de mulheres e de meninas é extendida para pessoas do sexo masculino, ela deixa de ser destinada única e exclusivamente à proteção de meninas e mulheres. O que estamos vendo, na prática, é que todas as leis específicas para as pessoas do sexo feminino têm sido deturpadas e usurpadas por pessoas do sexo masculino.
A ofensiva é explícita e vem disfarçada de “inclusão”. Essa decisão do STF é mais uma consequência do progressivo apagamento da categoria mulher enquanto classe sexual, com características próprias e portanto merecedora de instrumentos legais próprios e políticas públicas específicas.
Todo o trabalho da MATRIA é focado na luta contra esse apagamento, pois entendemos que a manutenção do marcador sexo é essencial para lutar contra a violência diária que mulheres sofrem, por terem nascido mulheres. As violências sofridas por outros grupos têm natureza diferente e devem ser tratadas de forma específica, baseada em pesquisas sérias, em evidências robustas, e não em dados falsos e chantagem emocional.
Estamos assistindo, rapidamente e de assalto, ao fechamento da possibilidade de legislar exclusivamente para mulheres, com suas particularidades e necessidades. E isso acontece em um momento terrível em que a violência contra a mulher alcança números epidêmicos.
Seguiremos denunciando o desmonte de leis e políticas públicas exclusivas para mulheres, conquistadas recentemente e fruto de muita luta.