Em 03/10/2024, o jornal O Globo publicou coluna de Opinião intitulada "Universidades precisam ter cotas trans".
Entre os autores, Bruna Benevides, atual presidente da ANTRA (Associação Nacional de Travestis e Transexuais), que produz anualmente dossiês que a MATRIA já comprovou apresentarem reiteradamente dados sem lastro e Lucas Dias, procurador do Acre que já mencionamos em texto a respeito das Relações obscuras entre MPF e Conselho LGBTQIA+ ligado ao Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania.
O texto não traz nada além de retórica sem embasamento:
No entanto pessoas trans e travestis ainda encontram muitos obstáculos para esse acesso [a instituições públicas de ensino]. Historicamente discriminadas por suas próprias famílias, frequentemente expulsas de casa e atiradas no mercado do trabalho sexual, enfrentam muitos desafios para completar um ciclo de escolarização formal.
A aprovação das cotas trans como medida de reparação é uma ação urgente para essa comunidade no país que mais mata e deixa matar travestis e transexuais.
Mesmo com os desafios atuais, há sólidos fundamentos jurídicos e experiências recentes que comprovam a importância das cotas. Espera-se que essa onda de inclusão se expanda para mais universidades e instituições públicas, promovendo a igualdade e combatendo discriminações, em linha com os objetivos da Constituição de 1988.
As afirmações acima, feitas sem qualquer referência, são facilmente refutáveis pelas pesquisas já existentes sobre o tema.
Não há comprovação de que a parcela da população que se autodeclara trans tenha um nível de escolaridade abaixo da média da população brasileira, pelo contrário.
A Nota Técnica publicada pela Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (PFDC), citada pelo artigo, é de coautoria de Lucas Dias, que também assina a peça de opinião. Vejamos o que ela diz a respeito do nível educacional da população autodeclarada trans, para quem pleiteia a criação de cotas universitárias (pág. 8):
Dentre os entrevistados, apenas 51% declararam ter completado o ensino médio e, desses, 27,1%, declararam haver completado o ensino superior. Não obstante, o mercado de trabalho é escasso para travestis e mulheres trans, tendo a pesquisa constatado que 90% vive da prostituição; enquanto 72% realiza trabalho informal (“bico”). A pesquisa também comprovou a baixa expectativa de vida das pessoas desse grupo de vulneráveis, na medida em que 70% dos entrevistados não ultrapassaram 35 anos.
As estatísticas referidas, portanto, não deixam dúvidas quanto à severa precariedade existencial das pessoas transgêneras no Brasil, nem quanto ao baixo índice de desenvolvimento humano desse segmento da população. Elas ainda enfatizam a necessidade da adoção de políticas públicas para alterar essa triste realidade.
Uma realidade marcada por constantes violências e impedimentos que afeta diretamente o acesso à educação por essas pessoas. Ao longo do período de formação básica, a evasão escolar é muito comum, e o desrespeito às suas identidades e às condições financeiras dos indivíduos que pertencem a essa parcela da população interferem incisivamente na continuidade dos seus estudos.
A 5ª Pesquisa Nacional de Perfil Socioeconômico e Cultural dos Graduandos das Instituições Federais de Ensino Superior realizada pela Andifes evidenciou a baixa presença de pessoas trans nos espaços acadêmicos – o que representa apenas 0,2% dos estudantes. Ainda segundo a pesquisa, apenas 10% dessa população encontra-se empregada no mercado de trabalho formal e 90% sobrevive por meio da prostituição. [grifo nosso]
Os dados mencionados acima são de Pesquisa realizada no Município de São Paulo pelo CEDEC - Centro de Estudo de Cultura Contemporânea (a citação ao CEDEC vem no parágrafo anterior ao trecho acima, porém sem constar das referências da Nota Técnica, tornando difícil a conferência por aqueles que querem verificar as afirmações feitas pela Procuradoria Federal).
Os dados que a Nota Técnica em questão usa para afirmar que "apenas 51% declararam ter completado o ensino médio e, desses, 27,1%, declararam haver completado o ensino superior" e que para aqueles que se autodeclaram trans "a evasão escolar é muito comum, e o desrespeito às suas identidades e às condições financeiras dos indivíduos que pertencem a essa parcela da população interferem incisivamente na continuidade dos seus estudos", no entanto, comprovam exatamente o oposto.
Como a MATRIA explicitou em texto anterior, em 2021, ano da pesquisa realizada pelo CEDEC, o número de brasileiros com ensino médio, de acordo com o IBGE, era de 42,1%, ou seja, a escolarização que a Nota Técnica menciona para a população que definem como "transexual e travesti" está acima da média da população geral. O mesmo acontece com o ensino superior, pois os 27,1% mencionados estão acima dos 19,7% da população brasileira geral daquele ano, de acordo com a PNAD.
Quanto à última das informações da Nota Técnica sobre escolaridade ("a baixa presença de pessoas trans nos espaços acadêmicos – o que representa apenas 0,2% dos estudantes"), ela não quer dizer absolutamente nada da forma como apresentada: sem dados oficiais sobre o tamanho da população autodeclarada trans no país (que ainda por cima pode variar a qualquer momento dado que "trans" é um termo guarda chuva para uma série de identidades fluidas), impossível saber se 0,2% do total de estudantes universitários do país se autodeclararem trans é pouco ou muito (mais uma vez a Nota Técnica não traz a referência da pesquisa em questão, que é de 2018 e se encontra aqui).
Como já amplamente demonstrado pela MATRIA, não se pode afirmar, como feito na Nota Técnica da PFDC, que a expectativa de vida da população autodeclarada trans no Brasil é de 35 anos ou, na coluna de Opinião, que o Brasil é o "país que mais mata e deixa matar travestis e transexuais". Os principais argumentos estão resumidos neste vídeo realizado pelo Coletivo Raízes Feministas.
Não há portanto dados que comprovem a necessidade de quotas para essa parcela da população e o artigo coloca propositalmente o que chama de "pessoas LGBTQIA+" (grupo sem coesão interna alguma) ao lado de pessoas "pretas, pardas, indígenas, com deficiências" para mais à frente afirmar que "há sólidos fundamentos jurídicos e experiências recentes que comprovam a importância das cotas". Os fundamentos jurídicos existentes no país e as experiências recentes que temos com cotas, no entanto, se referem a parcelas da população para quem as cotas estão previstas em Lei (pessoas pretas, pardas, quilombolas, indígenas, gom deficiências) e que, para serem criadas, passaram por longo debate, baseado em evidências científicas. Não é o caso do que vem acontecendo com as cotas para quem se autodeclara trans.
A mídia, infelizmente, parece ter perdido qualquer compromisso com a imparcialidade e com dados, reverberando de forma irresponsável narrativas como a desta coluna de Opinião, sem uma pesquisa sobre os supostos dados apresentados, sem apresentar outros pontos de vista ou espaço para o contraditório.