Em 09/01/2023, o então recém criado Ministério das Mulheres fez sua primeira postagem no Instagram. No dia 27 do mesmo mês, em sua 14ª postagem e a primeira com uma organização da sociedade civil, informou ter recebido representantes da ANTRA (Associação Nacional de Travestis e Transsexuais) e comentou que “O Ministérios é ‘das mulheres’ porque elas são diversas e são plurais. E está à disposição e será parceiro na execução de políticas públicas para pessoas trans e travestis e em combate ao preconceito.”
A título de exemplo, as organizações de mulheres pela revogação da Lei da Alienação Parental já vinham solicitando reuniões com o Ministério desde a sua criação e até a presente data não foram recebidas.
Na foto da postagem, a Ministra recebe o “Dossiê: Assassinatos e violências contra travestis e transsexuais brasileiras” no qual a ANTRA informa a ocorrência de 131 assassinatos de pessoas trans identificadas em 2022 no país, concluindo (pág. 103) que “a cada 48 horas uma travesti ou mulher transexual é assassinada no Brasil, sendo que cerca de 70% das vítimas têm entre 16 e 29 anos, o que contribui para que a expectativa de vida da população trans no Brasil seja a menor do mundo, em torno de apenas 35 anos.” Tal dado, junto com a afirmação de que o Brasil seria o “país que mais mata Travestis e Transexuais do mundo”, também presente no Dossiê da organização (pág. 11), já foram desmentidas pela MATRIA no documento "Falsas afirmações sobre a população autodeclarada trans no Brasil”.
Os quase 3.000 comentários da postagem são esmagadoramente negativos e questionando o Ministério sobre a reunião com pessoas do sexo masculino, sobre o uso de aspas em Ministério ‘das mulheres’ e sobre a definição de mulher que o Ministério está utilizando para implementação de políticas públicas. Nos comentários surgiu a proposta do envio de pedidos de informação através da Lei de Acesso à Informação (LAI) questionando o Ministério sobre dois pontos:
Qual definição de mulher que o novo Ministério das Mulheres está utilizando para seu trabalho de levantamento de dados e criação de políticas públicas;
Qual a base legal da definição utilizada, caso esta inclua pessoas do sexo masculino que se declarem mulheres.
A LAI é uma ferramenta que pode ser utilizada por qualquer cidadã ou cidadão e que traz a obrigatoriedade de resposta por parte do órgão questionado, com exceção de raras informações classificadas como sigilosas, o que certamente não é o caso das perguntas acima.
Para facilitar a tarefa, a Coletiva SO.MA postou em seu perfil um Manual de uso da LAI, que pode e deve ser compartilhado por todas, dando o passo a passo para sua utilização desta ferramenta e os cuidados que devemos ter para que o pedido não seja rejeitado.
Uma consulta por “definição mulher” no site onde é possível buscar pedidos e respostas através da LAI retorna nas primeiras páginas 61 pedidos que solicitam de alguma forma ao Ministério que este defina o conceito de mulher usado pelo órgão, sendo portanto este o número mínimo de pedidos oficiais feitos ao Ministérios (a busca retorna 913 itens em 30/04/2024).
A resposta inicial do Ministério das Mulheres a todos estes pedidos, assinada por Ana Teresa Iamarino, Chefe de Gabinete da Ministra, foi aparentemente enviada a todas as solicitantes em 22/02/2023, supõe-se, com texto idêntico.
As perguntas e respostas feitas por associada da MATRIA sobre o tema podem ser encontradas aqui e as todas as citações abaixo podem ser encontradas no link e seus anexos.
No Ofício de resposta recebido inicialmente (Ofício Nº 65/2023/OUV.MULHERES/GAB.MULHERES/MMULHERES), a Chefe de Gabinete lista as competências do Ministério das Mulheres e informa que para cumpri-las, o Ministério tem como base os Planos Nacionais de Políticas para as Mulheres, construídos a partir das Conferências Municipais, Estaduais e Nacional de Políticas para as Mulheres, realizadas nos anos de 2004, 2007, 2011 e 2016 e que orientam-se “pelos princípios da igualdade e respeito à diversidade, da equidade, da autonomia das mulheres, da laicidade do Estado, da universalidade das políticas, da justiça social, da transparência dos atos públicos e da participação e controle social”. O Ofício cita os seguintes trechos dos Planos Nacionais:
mulheres e homens são iguais em seus direitos e sobre este princípio se apoiam as políticas de Estado que se propõem a superar as desigualdades de gênero. A promoção da igualdade requer o respeito e atenção à diversidade cultural, étnica, racial, inserção social, de situação econômica e regional, assim como aos diferentes momentos da vida. Demanda o combate às desigualdades de toda sorte, por meio de políticas de ação afirmativa e consideração das experiências das mulheres na formulação, implementação, monitoramento e avaliação das políticas públicas. (BRASIL, 2004, p. 31)
autonomia das mulheres em todas as dimensões da vida; busca da igualdade efetiva entre mulheres e homens, em todos os âmbitos; respeito à diversidade e combate a todas as formas de discriminação; caráter laico do Estado; universalidade dos serviços e benefícios ofertados pelo Estado; participação ativa das mulheres em todas as fases das políticas públicas; e transversalidade como princípio orientador de todas as políticas públicas (BRASIL, 2013, p.9 https://www.gov.br/mdh/pt-br/navegue-por-temas/politicas-paramulheres/arquivo/assuntos/pnpm/publicacoes/pnpm-2013-2015-em-22ago13.pdf )
O princípio da diversidade, como orientador a implementação das políticas para as mulheres, é reforçado no IV PNPM, por meio de seus capítulos, que incluem os seguintes eixos: direito à terra com igualdade para as mulheres do campo e da floresta; enfrentamento do racismo, sexismo e lesbofobia; igualdade para as mulheres jovens, idosas e mulheres com deficiência, dentre outros.
No capítulo destinado ao enfrentamento do racismo, do sexismo e da lesbofobia, o PNPM cita como um dos objetivos específicos:
contribuir para a superação de todas as formas de violência institucional que atingem as mulheres em razão do racismo, sexismo, lesbofobia e de todas as formas de preconceito e discriminação baseadas em gênero, orientação sexual e identidade de gênero (BRASIL, 2013, p. 85 http://www.naosecale.ms.gov.br/wp-content/uploads/2021/03/arquivo-1-plano-nacional-depoliticas-para-as-mulheres.pdf )
No capítulo dedicado ao eixo “igualdade para as mulheres jovens, idosas e mulheres com deficiência”, o PNPM faz menção ao objetivo geral “garantir o protagonismo das mulheres jovens, idosas e mulheres com deficiência na elaboração, no monitoramento e na avaliação das políticas públicas” (BRASIL, 2013, p. 91).
Dessa forma, em consonância com os Planos Nacionais de Políticas para as Mulheres, este Ministério tem como compromisso a formulação de políticas públicas, que tenham como público todas as mulheres, consideradas em sua diversidade.
A resposta, portanto, apenas lista uma série de adjetivos aplicados às mulheres (jovem, idosa, com deficiência, do campo etc), sem no entanto definir o termo mulher. A introdução da expressão “identidade de gênero” como uma das razões pelas quais mulheres sofrem violência, no entanto, já é um indício de que o Ministério considera que ser mulher é uma identidade que pode ser adotada por indivíduos do sexo masculino e não uma realidade material, mas não quer afirmá-lo em documento oficial.
Em recurso de 1ª instância, os pedidos iniciais foram reiterados, dado que não foram respondidos.
O Ofício de resposta a este recurso, também assinado pela Chefe de Gabinete da Ministra e encaminhado 3 dias após o fim do prazo previsto para resposta, lista legislações nacionais e internacionais utilizadas como diretrizes para implementação de políticas públicas para mulheres e afirma que:
6. Embora todos esses documentos se refiram às mulheres e façam menção ao gênero como norteador das políticas para as mulheres (a exceção da Lei do Feminicídio), não há definição relativa aos conceitos “mulher/es” e “gênero”.
7. Dada a inexistência de definição dos termos, este Ministério baseia sua atuação nos Planos Nacionais de Políticas para as Mulheres, que embora não tragam uma definição precisa do termo mulher ou gênero (tal qual a legislação nacional e internacional), apontam princípios balizadores da formulação das políticas públicas.
O Ofício conclui da seguinte forma:
9. O princípio da diversidade, como orientador a implementação das políticas para as mulheres, é reforçado no IV PNPM, por meio de seus capítulos, que incluem os seguintes eixos: direito à terra com igualdade para as mulheres do campo e da floresta; enfrentamento do racismo, sexismo e lesbofobia; igualdade para as mulheres jovens, idosas e mulheres com deficiência, dentre outros.
10. Assim, embora não haja definição dos termos “mulher” e “gênero” nos marcos normativos, este Ministério busca, em consonância com os Planos Nacionais de Políticas para as Mulheres, formular políticas públicas, que alcancem todas as mulheres, consideradas em sua pluralidade e diversidade (racial, étnica, de classe, de orientação sexual, de identidade de gênero, de deficiência, de situação econômica e regional, dentre outros marcadores sociais).
O Ministério diz, portanto, não haver na legislação definição da palavra mulher e ainda reitera o uso de “identidade de gênero” (novamente sem definir o que quer dizer) como marcador social que faz parte da pluralidade das mulheres a serem atendidas pelo Ministério.
Ocorre que, para além do absurdo que é o Ministério afirmar em documento oficial não ter uma definição do público alvo para quem deveria implantar políticas, o Ofício, ao listar as legislações nas quais se apoia, cita em primeiro lugar a CEDAW, da seguinte forma:
Convenção sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação Contra a Mulher - CEDAW, 1979, Decreto nº 4.377, de 13 de setembro de 2002, que conceitua discriminação como toda distinção, exclusão ou restrição baseada no sexo e que tenha por objeto ou resultado prejudicar ou anular o reconhecimento, gozo ou exercício pela mulher, independentemente de seu estado civil, com base na igualdade do homem e da mulher, dos direitos humanos e liberdades fundamentais nos campos político, econômico, social, cultural e civil ou em qualquer outro campo. (grifo nosso)
Foi então encaminhado recurso em 2ª instância, sempre reiterando as mesmas perguntas e apontando a contradição de uma resposta que cita não apenas a CEDAW mas o trecho específico que conceitua a discriminação que mulheres sofrem como baseada em sexo e ainda assim conclui não ter uma definição da palavra mulher.
O recurso em 2ª, que teria que ser respondido pela própria Ministra, não foi respondido dentro do prazo previsto, abrindo a possibilidade de encaminhamento do recurso à Controladoria Geral da União (CGU), o que foi feito em 14/03/2023.
O papel da CGU era decidir se, de fato, o Ministério não respondeu ao que foi solicitado, tendo o órgão o poder de determinar que o Ministério respondesse ao pedido.
A CGU prorrogou seu próprio prazo para resposta por duas vezes, citando “a necessidade de coletar esclarecimentos adicionais” dada “a complexidade da matéria objeto do recurso”. Sua decisão final foi pelo “não conhecimento do recurso, visto que tratam de informações inexistentes, nos termos da Súmula CMRI no 6/2015.”, conforme trecho abaixo do PARECER N° 235/2023/CGRAI/DRAI/SNAI/CGU:
14. Passando-se à análise do recurso, percebe-se que o recorrido deixou claro em sua resposta ao recurso de 1a instância, que não existe definição dos termos “mulher” e “gênero” nos marcos normativos. Ressalte-se que a declaração de inexistência de documento ou informação por Órgão público é revestida de presunção relativa de veracidade, decorrente do princípio da boa-fé e da fé pública, além de ser consequência direta da presunção de legalidade dos atos administrativos. Ainda, sobre inexistência da informação, cabe ressaltar o que dispõe a Súmula CMRI no 6/201:
Súmula CMRI no 6/2015 INEXISTÊNCIA DE INFORMAÇÃO – A declaração de inexistência de informação objeto de solicitação constitui resposta de natureza satisfativa; caso a instância recursal verifique a existência da informação ou a possibilidade de sua recuperação ou reconstituição, deverá solicitar a recuperação e a consolidação da informação ou reconstituição dos autos objeto de solicitação, sem prejuízo de eventuais medidas de apuração de responsabilidade no âmbito do órgão ou da entidade em que tenha se verificado sua eliminação irregular ou seu descaminho.” (grifo nosso)
Em resumo, a CGU considera que a pergunta que o Ministério das Mulheres respondeu satisfatoriamente à pergunta “Qual a definição de mulher utilizada por este Ministério?” ao dizer que não há definição legal do termo mulher e que "a declaração de inexistência de documento ou informação por Órgão público é revestida de presunção relativa de veracidade, decorrente do princípio da boa-fé e da fé pública, além de ser consequência direta da presunção de legalidade dos atos administrativos."
Foi então encaminhado recurso à 4ª e última instância recursal disponível, a Comissão Mista de Reavaliação de Informações (CMRI), instância atrelada à Casa Civil.
A resposta, dada 9 meses após o recurso, foi novamente pelo não conhecimento do recurso “porque o Requerente apresenta manifestação com teor de reclamação, que não se insere no escopo do direito ao acesso à informação e porque houve inovação recursal”:
O Requerente argumentou que sua pergunta é pertinente, visto que é impossível planejar e implementar qualquer política para um público alvo específico sem saber defini-lo. Afirmou que a Convenção citada pelo Ministério, a CEDAW, define o termo mulher no próprio trecho mencionado pelo Órgão ao afirmar: "conceitua discriminação como toda distinção, exclusão ou restrição baseada no sexo e que tenha por objeto ou resultado prejudicar ou anular o reconhecimento, gozo ou exercício pela mulher, independentemente de seu estado civil, com base na igualdade do homem e da mulher, dos direitos humanos e liberdades fundamentais nos campos político, econômico, social, cultural e civil ou em qualquer outro campo”. O Requerente analisou que, nesse trecho, fica claro o entendimento de “mulher” como “pessoa nascida do sexo feminino”, visto que define discriminação contra mulheres com base em seu sexo. Desse modo, argumentou que, considerando que existe definição de mulher no normativo mencionado, não seria correto afirmar que não existe definição disponível em norma para “mulher”. Com isso, o Requerente questionou: Qual a definição que o Ministério das Mulheres está utilizando para “mulher”? Dado que existe definição de mulher na CEDAW, porque esta não foi informada? Se a definição existe e não é utilizada pelo Ministério, qual o motivo? A definição de mulher do Ministério atualmente inclui pessoas do sexo masculino? Em caso afirmativo, com que base legal? Por fim, reiterou seu pedido de esclarecimento em relação ao significado de “identidade de gênero”.
A inovação recursal a que a CMRI se refere foi a pergunta “Dado que existe definição de mulher na CEDAW, porque esta não foi informada? Se a definição existe e não é utilizada pelo Ministério, qual o motivo?”
De todo o processo acima, iniciado em 27/01/2023 e concluído em 14/02/2024, resta que temos um Governo que se deu por satisfeito, em diversas instância, com o fato de, aparentemente, ter criado um Ministério sem que haja definição normativa para o objeto ao qual o Ministério deveria se dedicar.
A realidade, no entanto, demonstrou a todas as mulheres atentas aos seus direitos que o Ministério das Mulheres inclui pessoas do sexo masculino em seu escopo, mesmo tendo se recusado a dizê-lo, apesar de perguntado dezenas de vezes através da Lei do Acesso à Informação e milhares de vezes em todos os posts feitos no Instagram desde a postagem inicial com a ANTRA e ainda que a definição da CEDAW por eles citada definir mulher com base no sexo.
O Ministério criou uma assessoria ligada diretamente ao Gabinete da Ministra para assuntos LBT, sigla para Lésbicas, Bissexuais e Transgênero/Transexuais e nada no trabalho do Ministério indica que a letra “T” desta sigla diga respeito a pessoas dos sexo feminino que se autodeclaram de outra forma, mas sim que tal letra contemple pessoas do sexo masculino, como demonstra, entre vários outros indícios, a postagem do Ministério pelo Dia das Mulheres, 08/03/2024, na qual é possível identificar claramente uma pessoa do sexo masculino no vídeo:
Portanto, não é com surpresa, mas com indignação, que tomamos conhecimento da postagem feita por Nine Borges, na qual é possível ouvir em áudio a assessora LBT da Ministra Cida Gonçalves, Maria Luiza Rodrigues de Aquino, dizendo, a respeito dos inúmeros pedidos recebidos via LAI:
Nós temos um entendimento do Ministério, um entendimento nosso, quando se pergunta o que é uma mulher, nós não temos que nos posicionar, mas a mulher trans é mulher sim, mulher trans é mulher. Isso não é discutível, nós somos o Ministério que respeita todas as mulheres.
Tivemos acesso à integralidade do áudio e a fala se deu em evento do NEPeM - Núcleo de Estudos e Pesquisa sobre Mulheres, da Universidade de Brasília, no dia 30/08/2023.
Interessante notar que a divulgação inicial do evento não mencionava a presença de Malu Aquino, assessora da Ministra das Mulheres e que o início do áudio (supõe-se pela mediadora do evento, Ana Paula Antunes) deixa claro ter sido uma estratégia proposital:
A gente não divulga amplamente, então o nosso objetivo (inaudível) uma reunião em que a gente possa se ouvir e mais controlada também, para que a gente não tenha pessoas transfóbicas entre nós e pessoas anti gênero entre nós.
O áudio vazado mostra que o Ministério das Mulheres, que como órgão público tem obrigação legal de responder com veracidade aos pedidos de acesso à informação, decidiu que não precisava respondê-los. De fato, o recurso em 2ª instância, que deveria ter sido respondido pela própria Ministra Cida Gonçalves, simplesmente não o foi.
É escandaloso que o Ministério das Mulheres se recuse a responder a definição de mulher que está pautando todo o seu trabalho, impedindo assim o debate sobre o tema e também que a sociedade civil desempenhe seu papel de fiscalizar a política pública.
É escandaloso que o Ministério das Mulheres, órgão público de um Estado democrático onde todo e qualquer tema e política pública são passíveis de discussão, decida que "mulher trans é mulher, isso não é discutível".
Resta claro que, em que pese a CGU ter deliberado pelo não provimento do recurso em 3º instância contando com a “presunção relativa de veracidade, decorrente do princípio da boa-fé e da fé pública” e com a “presunção de legalidade dos atos administrativos", o Ministério das Mulheres agiu de má-fé e faltou com a verdade em suas respostas, de forma proposital.
Assim, e dada a previsão da Súmula CMRI no 6/2015 mencionada pela CGU, a MATRIA buscará por todos os meios a “apuração de responsabilidade no âmbito do órgão”.