A ciência atual não oferece suporte para o uso de bloqueadores de puberdade em crianças e adolescentes
- MATRIA
- 27 de mar.
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A comunidade médica é bastante dividida em relação à segurança e eficácia do uso de hormônios bloqueadores de puberdade (análogos do hormônio liberador de gonadotrofina - GnRH) e hormônios cruzados no tratamento de crianças e adolescentes com disforia de gênero. Enquanto alguns especialistas defendem essas intervenções como clinicamente indicadas, outros alertam para a falta de evidências robustas e os riscos potenciais, colocando suas carreiras em perigo diante da virulência dos ataques do transativismo. A censura e a dificuldade em estabelecer consenso influencia decisões legislativas e políticas de saúde, tornando ainda mais importante a análise rigorosa das evidências científicas.
A avaliação da literatura científica sobre o tema se baseia em padrões que classificam a qualidade das pesquisas. Do ponto de vista científico, opiniões de experts e relatos de casos oferecem evidência de muito baixa qualidade. O nível mais alto de qualidade de evidência é oferecido por estudos clínicos randomizados, revisões sistemáticas e meta-análises. As revisões sistemáticas filtram e sumarizam toda a literatura cientifica sobre um tema. Elas permitem definir o grau de confiança que é possível ter sobre os efeitos, riscos e benefícios de tratamentos de saúde. Por isso, revisões sistemáticas e meta-análises, ao invés de opiniões, são consideradas fontes mais adequadas para embasar decisões clínicas. As várias revisões disponíveis hoje (listadas ao final do texto) mostram que a maior parte dos estudos sobre bloqueadores de puberdade apresentam limitações, sendo classificados como de baixa ou muito baixa qualidade.

A falta de benefícios de bloqueadores de puberdade
As revisões sobre bloqueadores apontam que esses medicamentos são de fato eficazes para impedir o desenvolvimento de características sexuais secundárias durante a adolescência. Porém não há consenso sobre seus efeitos na saúde mental e bem-estar dos adolescentes.
A supressão da puberdade pode comprometer o desenvolvimento cognitivo, emocional e social, e dificultar procedimentos médicos futuros para pacientes que persistem se identificando com o sexo oposto. Por exemplo, a inibição do crescimento peniano pode tornar a vaginoplastia mais complexa e arriscada. Um dos participantes de um estudo pioneiro que originou o protocolo afirmativo amplamente usado hoje morreu durante o acompanhamento. A morte desse paciente foi, pelo menos em parte, uma consequência da supressão da puberdade: o desenvolvimento normal do pênis foi impedido, tornando-o pequeno demais para a vaginoplastia convencional. Por isso, foi tentada uma cirurgia de vaginoplastia mais arriscada, utilizando uma parte do intestino, que acabou evoluindo para uma infecção generalizada.
Outro argumento que carece de confirmação é a ideia de que os bloqueadores de puberdade oferecem tempo para que adolescentes explorem sua identidade de gênero. Uma das principais revisões sobre o tema sugere, na verdade, que esses medicamentos podem reforçar a persistência do sofrimento que caracteriza a disforia de gênero, reduzindo as chances de sua resolução. Além disso, as pesquisas disponíveis não demonstram melhora significativa na saúde mental dos adolescentes submetidos a esse tratamento, havendo casos de agravamento de sintomas psicológicos e aumento de internações psiquiátricas.
O impacto dos bloqueadores na prevenção da morte por suicídio (cuja ocorrência é rara e gira em torno de 0,03 a 2,8% da população de pacientes adolescentes que recebem tratamento) também é muito limitado. Apesar de algumas pesquisas de baixa qualidade sugerirem uma um possível efeito positivo, revisões sistemáticas apontam a inexistência de evidências concretas nesse sentido.
Bloqueadores de puberdade envolvem muitos riscos conhecidos e potenciais
O uso de bloqueadores da puberdade está associado a danos já conhecidos e a outros efeitos que ainda não foram completamente compreendidos. Apesar de algumas alegações de que esses medicamentos seriam reversíveis, várias revisões sistemáticas apontam que os impactos de longo prazo na fertilidade, função sexual, desenvolvimento cognitivo e saúde óssea ainda não estão claros o suficiente para sustentar essa afirmação.
Além disso, já foram relatados efeitos colaterais como ondas de calor, ganho de peso, fadiga, alterações de humor e convulsões. Há também uma relação com a hipertensão intracraniana idiopática, que pode causar dores de cabeça intensas e até perda permanente da visão. Outro risco envolve a epifisiólise femoral proximal, um problema no quadril que pode exigir cirurgia e prejudicar a capacidade de andar. Já se sabe que esses bloqueadores podem prejudicar a densidade óssea, a função sexual e a fertilidade durante o uso, mas ainda não está claro se esses efeitos continuam mesmo depois de interromper o tratamento ou iniciar hormônios sexuais cruzados.
Outra preocupação importante é o impacto dos bloqueadores no desenvolvimento do cérebro. Algumas pesquisas indicam que a supressão da puberdade pode afetar a função executiva, reforçando a ideia de que esse período é essencial para o amadurecimento cognitivo. Mas, como ainda existem poucos estudos sobre os efeitos de curto, médio e longo prazo, não dá para afirmar com certeza se essas mudanças são permanentes ou reversíveis. Além disso, há indícios de que esses bloqueadores podem fazer com que a disforia de gênero persista em adolescentes que, de outra forma, poderiam ter passado por mudanças naturais na forma como se identificam ao longo da puberdade. Na maioria dos adolescentes, a disforia desaparece com a chegada da vida adulta. A puberdade é essencial para o autoconhecimento, a aceitação da orientação sexual e a construção da identidade. Ao bloquear esse processo, os medicamentos podem acabar influenciando o desenvolvimento da identidade de gênero, tornando-o mais rígido.
Por fim, existem sérias dúvidas sobre se é realmente possível obter um consentimento informado, que é imprescindível para o uso ético de bloqueadores. Como a ciência ainda não tem respostas definitivas sobre os riscos, benefícios e consequências desse tratamento, nem mesmo os médicos possuem informações completas para orientar corretamente adolescentes e seus responsáveis. Ou seja, no cenário atual, não há como garantir que menores de idade e seus pais tenham acesso a todos os dados necessários para tomar uma decisão totalmente informada e autônoma. Isso levanta questões éticas importantes sobre a segurança de usar esses medicamentos em adolescentes, cujo desenvolvimento físico e mental ainda está em andamento.
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