Aída Souza
OAB/MG 210.702
1984 e a Ditadura Militar: Censura e Controle do Discurso
No romance 1984, Orwell descreve o conceito de novafala, uma linguagem projetada para restringir a liberdade de pensamento e limitar a capacidade de expressar ideias contrárias ao regime. Durante a Ditadura Militar no Brasil, observa-se um fenômeno semelhante: a censura sistemática de opiniões políticas divergentes, a repressão a opositores e a perseguição de intelectuais, jornalistas e artistas.
O regime militar utilizou instrumentos legais para suprimir liberdades individuais, como o Ato Institucional nº 5 (AI-5), que eliminava garantias fundamentais. O objetivo era impedir o debate político e a formulação de ideias contrárias ao regime.
A ADO 26, ao equiparar o debate sobre a teoria de gênero a um crime, evoca esse histórico de censura e controle da opinião. A criminalização do discurso em torno da distinção entre sexo e gênero tem impedido discussões sobre políticas públicas que levem em consideração o sexo biológico, como a separação de espaços femininos, competições esportivas e cotas para mulheres.
Nesta seara da adoção da teoria de gênero pelas instituições contemporâneas, um fenômeno recente que reforça esse controle discursivo é a imposição da chamada linguagem neutra em diversos âmbitos da sociedade, incluindo instituições acadêmicas, órgãos públicos e setores privados. Essa modificação linguística, promovida sem amplo debate democrático, busca eliminar marcas de gênero da língua portuguesa, impactando diretamente a comunicação e a liberdade de expressão. A resistência a essa imposição tem sido frequentemente classificada como preconceito, reforçando a censura e a punição de opiniões dissonantes.
O Princípio da Reserva Legal e o Garantismo Penal
A Constituição Federal de 1988 estabelece, em seu artigo 5º, inciso XXXIX, o princípio da reserva legal:
"não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal".
Esse princípio é reafirmado pelo artigo 1º do Código Penal, segundo o qual "não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal".
A consagração do nulla poena sine lege pelo constituinte originário e pelo legislador infraconstitucional busca garantir que a punição estatal esteja estritamente delimitada pela lei, evitando arbitrariedades e garantindo previsibilidade ao cidadão. O princípio da legalidade penal é um pilar essencial do Estado Democrático de Direito, pois impede que o Estado criminalize condutas sem a devida previsão legal aprovada pelo Legislativo, o que assegura a segurança jurídica e a proteção contra abusos do poder punitivo.
Em consonância com Ferrajoli, o garantismo penal exige que o Direito Penal seja pautado pelo princípio da legalidade estrita, pois somente uma tipificação clara e precisa pode evitar perseguições políticas, censura e punições arbitrárias. A legalidade penal não é apenas uma formalidade jurídica, mas um escudo contra o abuso estatal, garantindo que o Judiciário não extrapole seu papel interpretativo e passe a legislar por meio de suas decisões.
No caso da ADO 26, o STF não apenas reconheceu uma omissão legislativa, mas também atuou como legislador, tipificando condutas sem que houvesse uma lei específica aprovada pelo Congresso Nacional. Tal decisão viola diretamente o princípio da separação dos poderes e da reserva legal, pois, em um Estado Democrático de Direito, apenas o Legislativo tem a prerrogativa de criar leis penais. O risco dessa interpretação judicial ampliativa é a criação de tipos penais vagos e indeterminados, que podem ser usados para cercear a liberdade de expressão e restringir o debate público sobre temas sensíveis.
O Descumprimento do Artigo 12-H da Lei 9.868/1999
A Lei 9.868/1999, que regula a Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão, em seu artigo 12-H, determina que, ao reconhecer uma omissão inconstitucional, o STF deve apenas comunicar o Congresso Nacional e estipular um prazo razoável para que a omissão seja sanada.
Na ADO 26, contudo, o STF não apenas reconheceu a omissão, mas também atribuiu interpretação conforme à Lei 7.716/1989, estendendo sua aplicação para criminalizar condutas não previstas originalmente pelo legislador. Isso representa um ativismo judicial que viola a previsibilidade jurídica e gera um cenário de insegurança para cidadãos e cidadãs que debatem políticas públicas baseadas no sexo biológico.
Além disso, ao determinar a aplicação imediata do acórdão antes que o Congresso Nacional elaborasse a legislação específica para suprir a omissão identificada, o STF extrapolou os limites estabelecidos pela Lei 9.868/1999. Esse procedimento inverte a lógica constitucional da reserva de jurisdição legislativa, impondo normas penais sem que houvesse um processo legislativo adequado, o que compromete a separação dos poderes e amplia ainda mais a insegurança jurídica.
Consequências da Decisão e a Criminalização do Debate
A decisão do STF tem gerado diversos impactos negativos, incluindo:
Censura de ideias: Acadêmicos, jornalistas e cidadãos que questionam a adoção irrestrita da teoria de gênero têm sido acusados de transfobia, o que inibe o debate público sobre políticas baseadas no sexo biológico.
Insegurança jurídica: A ampliação de uma norma penal por decisão judicial cria um ambiente de incerteza quanto ao alcance e à aplicação da lei.
Violação da separação dos poderes: O STF atuou como legislador, ignorando o devido processo legislativo e o debate público necessário para a criação de normas penais.
Consequências específicas para as mulheres: Mulheres ficam impedidas de falar sobre sua própria realidade, reivindicar seus direitos baseados no sexo e expressar os prejuízos que experimentam em suas vidas. Além disso, são obrigadas a dividir seus espaços exclusivos, violando sua percepção pessoal de segurança, intimidade, privacidade e moralidade, além de serem expostas a risco real de abusos de toda ordem, sob pena de serem acusadas de discriminação transfóbica.
Conclusão
O reconhecimento de direitos a grupos vulneráveis é essencial, mas deve ser realizado dentro dos limites democráticos e respeitando os princípios constitucionais. A decisão da ADO 26, ao tipificar penalmente condutas sem base legislativa, compromete a segurança jurídica, viola a reserva legal e gera um ambiente de censura ideológica, limitando a liberdade de expressão e o debate acadêmico.
Mais grave ainda, essa decisão ignora por completo o impacto sobre as mulheres, um grupo historicamente marginalizado e que enfrenta, diariamente, a necessidade de lutar não apenas por mais direitos, mas pela manutenção dos que já foram conquistados com imenso esforço. O ativismo judicial demonstrado no caso da ADO 26 não se preocupou em ponderar possíveis conflitos de direitos, impondo uma narrativa única e silenciando qualquer questionamento legítimo a respeito da diferenciação entre sexo e identidade de gênero.
As mulheres, que por séculos lutaram contra a violência e a opressão baseadas em seu sexo biológico, agora se veem obrigadas a aceitar a violação de seus espaços exclusivos – banheiros, vestiários, enfermarias, centros de acolhimento a vítimas de violência masculina – sob a ameaça de serem criminalizadas por transfobia. Isso não é avanço; é um retrocesso mascarado de progresso. Quando um grupo social precisa se calar sobre sua própria realidade e seus direitos para que outro grupo seja protegido, não estamos diante de um Estado de Direito, mas de uma nova forma de opressão institucionalizada.
Os descumprimentos sistemáticos de princípios constitucionais e legislações infraconstitucionais pelo Poder Judiciário em uma única ação judicial, com tantas consequências negativas para diferentes nichos sociais, especialmente mulheres e crianças, levantam questionamentos sobre uma possível propensão da Suprema Corte de desconsiderar os direitos humanos de algumas parcelas da população.
Não há justiça quando um tribunal, que deveria zelar pelo equilíbrio e pela legalidade, decide legislar e ignorar os impactos de sua decisão sobre milhões de mulheres. O Estado Democrático de Direito deve garantir direitos a todos, sem sacrificar a segurança e a dignidade de um grupo vulnerável para promover um ideal político-ideológico. Se não houver resistência contra esse tipo de ativismo, cada vez mais direitos serão solapados, e as mulheres continuarão sendo relegadas ao silêncio e ao esquecimento, sob o peso de acusações infundadas e de uma justiça que, ao invés de protegê-las, as abandona.