De autoria de Mel Supernova
Artigo de opinião publicado no site Crónica Libre, em 18 de novembro de 2023.
Tradução por MATRIA
A MATRIA realiza traduções de artigos que possam contribuir para o debate acerca das questões de gênero e uma das questões que nos parece relevante trazer são as vozes de pessoas autodeclaradas trans que contradizem a hegemonia do discurso transativista. Mel Supernova é uma pessoa autodeclarada trans do sexo masculino e coloca nesse artigo questões relevantes e honestas para debate.
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Tenho escrito sobre minhas experiências e história como pessoa trans há alguns anos, e particularmente, chamando atenção para o transativismo de “identidades de gênero”. Refiro-me a ele pelo que chamo de “hegemônico e mediático” porque é presumido e publicizado como voz única e final, intransigente e totalitária, do que as pessoas trans desejam ou precisam.
[Este transativismo de “identidade de gênero”] Monopoliza cada holofote, câmera, plataforma ou microfone, mas silencia, invisibiliza e silencia as mesmas pessoas trans que detêm outras posições e pontos de vista. Apesar de reivindicar exclusividade como único discurso válido e digno de atenção sobre questões do feminismo, das lutas LGBT e dos direitos humanos, na realidade, ignora os fundamentos destas lutas e nem sequer definiu seus próprios termos ou conceitos. Este comportamento, a saber, de não estabelecer definições, de relativizar significados e de alterá-los de acordo com o que é conveniente, não se trata de um defeito em suas posições, mas sim no modo pelo qual o movimento de identidade de gênero foi criado e teve início.
Seu principal inimigo é a definição da realidade material - essencial para a criação de um movimento social onde se deve determinar a situação econômica e a realidade tangível e objetiva enfrentada por um determinado grupo humano -, situação à qual se opõem, porque a realidade “é [baseada em] percepções, [na] autoidentidade”. Rejeitam a base material e das classes sociais como referência para defender outras coisas, tais como sentimentos ou validação de terceiros, focando mais nas experiências individuais e no controle da percepção dos outros em relação a eles, mantendo essa autopercepção e a validação disso como “direitos”, quando na realidade não são nada mais do que o exercício de um privilégio.
Sexo biológico
O exemplo mais marcante sobre este privilégio é que eles não demonstram o mínimo de interesse em criar condições para que as pessoas trans tenham acesso a empregos dignos, a uma habitação digna e a tratamentos médicos adequados, centrados na nossa verdadeira biologia e fisiologia (que será a base para a garantia de direitos para pessoas trans). Mas suas maiores demandas consistem em tentar ignorar a realidade tangível do sexo, porque “é relativo/complicado” ou “não existe” e forçar a população em geral a aceitar sem questionar que o sexo biológico não importa socialmente ou psicologicamente, causando problemas médicos. Trata-se de uma desconexão com a estrutura da sociedade, com a classe trabalhadora e que entra em conflito direto com os direitos de outros grupos, principalmente os das mulheres.
Repensando o ativismo trans
Sob condições de estabelecer um debate, estes argumentos que descrevi nos parágrafos acima devem levar a repensar o transativismo para que se concentre nos problemas de exclusão econômica, avançando em relação à discriminação e estabelecendo precisamente quais os direitos que nos faltam, além de buscar um melhor entendimento com outros grupos, a exemplo dos trabalhadores, camponeses, etnias e, claro, mulheres e comunidades L, G e B. No entanto, o transativismo hegemônico decidiu que não precisa debater nada porque não precisa definir qualquer coisa. Seu argumento público é o de que “direitos e identidades são inegociáveis”, quando sequer definiram o que querem dizer com “direitos” ou “identidades” e quando não têm interesse em fazê-lo.
Como se não bastasse, assumir e exigir que os médicos os tratem respeitando a percepção individual da sua “identidade” e não a realidade e a sua fisiologia, coloca as pessoas trans em risco direto, porque assim não teríamos [condições objetivas para receber os] cuidados adequados.
Além do mais, qualquer tipo de exigência para que definam seus próprios termos de forma eficaz e não com base em tautologias (terf, trans, cis, direitos trans, identidade, gênero, etc.) ou pedido de esclarecimentos, é digno de um único [e monocórdico] qualificador para eles: “transfobia”. “Transfobia” é um daqueles termos usados à menor provocação por políticos que querem lacrar, por figuras da mídia que querem ganhar pontos morais [agradando a militância], e ainda por jovens nas redes sociais, etc. O que isso significa? O que isso implica? Como seu uso é diário, generalizado e constante, está claramente definido, como deveria ser.
Etimologicamente, a palavra deveria significar “Medo do trânsito”. Fica implícito que a origem do termo seria uma derivação e adaptação de “homofobia”. Certamente, etimologicamente, o termo homofobia não faz muito sentido (“Medo da mesma coisa; Medo do que é igual”), mas os movimentos originais do Orgulho – que se preocuparam em delimitar e fortalecer o significado em seus próprios termos – estabeleceram que sua definição é “Ações e atitudes de discriminação e/ou violência contra pessoas homossexuais”.
Discriminação e violência
Portanto, a definição de transfobia deveria ser “Ações e atitudes de discriminação e violência contra pessoas transexuais”. Novamente, isso não vem do transativismo hegemônico, eles nunca se interessaram em definir nada. Esta definição é apenas uma readaptação. Mas o interessante surge quando insistimos para que o transativismo hegemônico defina o que é transfobia, e a resposta é “Não concordar conosco”.
Para o transativismo hegemônico, o reconhecimento da realidade material é tratado como “discriminação e violência”, assim como também o é reconhecer e aceitar o próprio sexo biológico e/ou a afirmação do fato de que este não pode ser alterado ou modificado entre os humanos de modo algum. Incorre em “discriminação e violência” quem argumentar que o gênero é a base da desigualdade social, por isso não pode ser justificado, mas deve ser abolido tal como classe social que é. É ainda “discriminação e violência” se você não aceitar seus termos sem defini-los como “cis” ou “trans”, além de defender que as pessoas trans devem ter espaços próprios – diferentes dos das mulheres. Para o transativismo hegemônico, também é violência recusar o uso da sua novilíngua e o uso de “pronomes preferidos”, mas não é violência ameaçar mulheres que não concordam com eles, por meio de violência física e feminicídio.
O exemplo mais difundido (e menos analisado, aliás) é o de JK Rowling, autora da saga Harry Potter. O transativismo hegemônico fez dela o objeto central do seu deboche e desprezo, e afirma claramente que o que ela diz é “transfobia”. Muitas pessoas, feministas, ativistas lésbicas, gays ou trans (não só eu, mas também pessoas como Buck Angel, Miranda Yardley, Aleksa Lundberg, etc.), jornalistas e até cientistas como Richard Dawkins afirmam sem parar, que não há nada a ser caracterizado como “discriminação e violência” contra pessoas trans nos escritos sobre questões de gênero de Rowling, onde inclusive uma recompensa de um milhão de libras foi anunciada para quem entregar um trecho ou momento preciso no qual ela expressa alguma violência sequer contra pessoas trans.
«Mulheres trans são mulheres»
O transativismo hegemônico não vai se conformar com pequenas coisas, tais como evidências ou análise de textos. Já sabemos que o objetivo deles é reinterpretar e forçar definições. Então, seu teste de evidência é quando você afirma, em algum momento, que são fundamentalmente diferentes as experiências de vida de pessoas trans que nasceram homens e fizeram a transição para a feminilidade (Rowling usa o termo popular e midiático “mulheres trans”, que me recuso a usar tanto para se referir a mim quanto a pessoas na minha condição) e mulheres nascidas do sexo feminino.
Isso, que é uma realidade inegável e a base para a nossa própria compreensão como pessoas trans, para o transativismo hegemônico, é um anátema. Porque entra em conflito com o seu dogma central “Mulheres trans são mulheres”, pois afirmam que a experiência como mulher e como homem em transição para a feminilidade é exatamente a mesma. Portanto, pressionada pelo transativismo identitário, Rowling afirmará categoricamente que não vai ceder a essa ideia porque não somos iguais.
Do lado dos dissidentes trans, essa ideia, essa diferença, é o ponto de partida para as nossas próprias reivindicações. Para nós, é sinônimo de transfobia internalizada negar que essa diferença existe na experiência e nas nossas histórias e usurpar os espaços das mulheres ao negar o próprio corpo, sua fisiologia e sua realidade. Acreditar e se convencer de que você é aquilo com que se identifica, é negar a sua própria realidade, contra a qual você se auto-viola e se auto discrimina.
Violência e discriminação
A adoção da frase “Mulheres trans são mulheres” é a promoção de uma fantasia obsessiva que auto-invalida as diferenças que nos fazem existir. Quem reconhece isso como sua realidade está desprezando seu corpo e sua própria vida, está assumindo uma transfobia internalizada. E sim, isso é violência e discriminação. Por esta razão, reconhecemos o nosso próprio sexo biológico, reivindicamo-lo e reconhecemos que o centro da nossa história é a transição. Qualquer outra reinterpretação é covardia e desejo de viver um delírio, uma simples fantasia que não vai te libertar.
Portanto, nós, pessoas trans dissidentes, reconhecemos os qualificadores de “transfobia” e “trans haters” do transativismo hegemônico e não podemos levá-lo a sério nem remotamente quando o cerne de seus slogans e dogmas (que não são argumentos ou definições porque isso lhes falta, recusando-se a debater conosco, a saber, pessoas trans que não concordam com eles) partem do ódio endereçado a si mesmas pelo próprio corpo, pela própria fisiologia e pela própria realidade, e quando consideram que a transfobia internalizada de negar o corpo, a fisiologia e a realidade é sinônimo de “compaixão ” e “fúria trans”. Não podemos levá-los a sério quando eles próprios nos discriminam e violam as pessoas trans que discordam deles.
Até hoje só recebi violência (física e psicológica) e discriminação de dois tipos de pessoas: homens sexistas e pessoas trans fanáticas por identidades de gênero. Esses são os dois grupos mais transfóbicos. Não vou mudar de ideia.