Como ocorre a alteração do “sexo” nos registros públicos?
1. Breve Histórico sobre Cartórios
Os cartórios estruturam-se como registros e como tabelionatos e datam sua existência desde os primórdios da organização social, para garantir a lisura nas transações econômicas, a autenticidade das declarações, a individuação e a atualização dos dados da vida civil não apenas entre as partes, mas perante toda a comunidade.
Desde a época do Brasil Colônia, a vida civil já era registrada em conjunto com a atuação de igrejas, estas com maior capilaridade no território do que o próprio Estado. Muitas bases se mantiveram desde então, principalmente no que tange o ideal de segurança jurídica, mas também houve muitas mudanças até a chegada da atual ordem inaugurada pela Constituição de 1988, na qual a atividade cartorária é prevista no art. 236.
2. Normativas de registros públicos e tabelionatos
A CF/88 manteve a competência para legislar sobre registros públicos exclusiva da União, conforme art. 22, inciso XXV; e consagrou a gratuidade dos registros de nascimento e de óbito, bem como a primeira certidão desses atos, a toda a população.
Nos termos da Lei nº 6.015/73, os registros públicos são estabelecidos pela legislação pátria, ao mesmo tempo como reflexos e como garantidores da autenticidade, segurança e eficácia dos atos jurídicos. Os registros públicos no Brasil se dividem da seguinte forma: registro civil de pessoas naturais; registro civil de pessoas jurídicas; registro de títulos e documentos; e registro de imóveis.
Além dos registros em sentido estrito, há os tabelionatos de notas e de protestos, que qualificam juridicamente a vontade das partes interessadas e resguardam o direito ao crédito, regulamentados respectivamente pelas leis federais nº 8.935/94, e nº 9.492/97.
Não obstante a competência privativa da União em legislar sobre registros públicos, a necessidade de adequação à realidade de cada um dos estados da federação levou a que as corregedorias estaduais – órgãos do poder judiciário estadual – fiscalizasse e controlasse a atividade por intermédio de Códigos de Normas Estaduais do Foro Extrajudicial.
A Emenda Constitucional 45/04 institui mecanismo de fiscalização e controle dos cartórios pelo Conselho Nacional de Justiça - CNJ. São vários os provimentos e as resoluções do CNJ sobre a matéria, para além das normas das corregedorias estaduais e entendimentos dos corregedores locais das comarcas nas quais cada cartório é instalado.
A dispersão de normas distintas em cada estado brasileiro se fazia imperativa para adequações regionais. Como a interligação via rede mundial de computadores e da globalização, a atuação do CNJ foi se intensificando, inclusive com a chegada do Provimento 149/2023/CNJ.
O Provimento 149/23 institui o Código Nacional de Normas da Corregedoria Nacional de Justiça - foro extrajudicial, para regulamentar os serviços notariais e de registro. Trata-se de consolidação dos atos normativos na busca de eliminar a dispersão, facilitar a consulta e sistematizar com vistas à segurança jurídica do ordenamento jurídico brasileiro, com remissões, revogações e ajustes.
A atuação do CNJ se mostrou necessária não apenas para a fiscalização direta da atividade cartorária, mas para pacificar e unificar entendimentos em novas tecnologias, novas decisões magistrais, e em novos assuntos que não poderiam ser previstos no passado, com a celeridade necessária para garantir a continuidade da prestação do serviço aos cidadãos e cidadãs.
3. Breve histórico de decisões sobre o tema
Existiam várias ações tramitando na justiça e decisões diversas sobre a possibilidade de alteração do campo “sexo” no registro de nascimento.
Um dos casos de relevo é o julgamento do Recurso Especial [1] - REsp 1.008.398, no ano de 2009 pela Terceira Turma do STJ, de relatoria da ministra Nancy Andrighi. Foi dado o provimento do pedido de uma pessoa auto identificada como “mulher transgênero” que havia realizado a cirurgia de “transgenitalização”, e buscava alterar o “gênero” e o nome de seus documentos civis consoante alteração do registro de nascimento.
No ano de 2017, em processo de número não divulgado por força de segredo judicial, de relatoria do ministro Luis Felipe Salomão, a Quarta Turma do STJ, decidiu-se pela desnecessidade da cirurgia de “transgenitalização” para a mudança do “sexo” em documentos públicos.
O ano de 2018 foi crucial para a fixação do assunto, tanto com o tema 761 quanto pela ADI 4275. No âmago de estandardizar o entendimento, o Supremo Tribunal Federal - STF julgou com repercussão geral o recurso extraordinário RE 670422 como “leading case”, ou seja, caso representativo da controvérsia que terá efeito vinculante aos demais. O trâmite processual até a apreciação do STF iniciou-se no âmbito do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul.
A repercussão geral se traduz no Tema 761 do STF que assegura a “Possibilidade de alteração de gênero no assento de registro civil de transexual, mesmo sem a realização de procedimento cirúrgico de redesignação de sexo.” O referido RE é de relatoria do ministro Dias Toffoli; e discute “à luz dos arts. 1º, IV; 3º; 5º, X, e 6º da Constituição, a possibilidade alteração do gênero feminino para o masculino no assento de registro civil de pessoa transexual, mesmo sem a realização da cirurgia de transgenitalização para redesignação de sexo”.
A tese fixada baliza-se da forma seguinte:
“ I) O transgênero tem direito fundamental subjetivo à alteração de seu prenome e de sua classificação de gênero no registro civil, não se exigindo, para tanto, nada além da manifestação de vontade do indivíduo, o qual poderá exercer tal faculdade tanto pela via judicial como diretamente pela via administrativa;
II) Essa alteração deve ser averbada à margem do assento de nascimento, vedada a inclusão do termo 'transgênero';
III) Nas certidões do registro não constará nenhuma observação sobre a origem do ato, vedada a expedição de certidão de inteiro teor, salvo a requerimento do próprio interessado ou por determinação judicial;
IV) Efetuando-se o procedimento pela via judicial, caberá ao magistrado determinar de ofício ou a requerimento do interessado a expedição de mandados específicos para a alteração dos demais registros nos órgãos públicos ou privados pertinentes, os quais deverão preservar o sigilo sobre a origem dos atos.”
Por sua vez, no julgamento da ADI 4275, o entendimento da desnecessidade da cirurgia foi mais uma vez adotado pelo STF. A partir desse momento, com a decisão do STF, Tema 761 e da ADI 4275, o CNJ se viu no papel de efetivar a aplicabilidade da decisão, visto que é responsável pela atuação dos cartórios.
Com o Provimento CNJ nº 73, de 28 de junho de 2018 houve a possibilidade fática da alteração do campo “sexo” nos assentos de nascimento diretamente em cartório, por meio do procedimento de alteração de prenome e “gênero” de pessoa “transgênero”.
O supracitado dispositivo foi substituído pelo Provimento nº 149, de 2023, mantendo o mesmo texto, apenas aglutinando várias normativas num mesmo documento. Tal normatização buscou adequar a confusão dada nos julgamentos quanto ao “sexo” e ao “gênero”, porém, sem sucesso, pois apesar do procedimento referir-se ao “gênero” acaba-se por alterar o campo destinado ao “sexo” nos registros públicos e, consequentemente, nos órgãos oficiais.
Tal fato trouxe insegurança jurídica às mulheres [2], visto que o sexo é um marcador material imutável, pois não se trata de gostos, comportamentos, sentimentos ou vestimentas, mas sim, da materialidade pautada pela biologia, ou seja, uma ciência.
4. Problemáticas das decisões
4.1 Confusão inadequada entre os conceitos de “sexo” e de “gênero”
Tanto o Tema 761 como as decisões acima citadas confundiram juridicamente os termos “sexo” e “gênero”, compreendidos pela doutrina especializada [3] como fundamentalmente distintos entre si.
O dado “sexo” é um fator imutável, tanto que é consignado como dado objetivo nas DNVs (Declarações de Nascidos Vivos). O dado é aferível sob o paradigma médico, verificável pela produção de gametas, código cromossômico e a expressão fenotípica.
Nem a cirurgia de “transgenitalização” tem o poder de mudar a formação de uma pessoa. Cria apenas falsas percepções aparentes de órgão genital diverso.
O “gênero”, para aqueles que o reconhecem como uma "identidade de gênero", versa sobre perspectivas de compreensão própria (subjetivas) quanto à respectiva existência no mundo.
"Gênero" é um termo polissêmico, com conceituações antagônicas entre diferentes perspectivas teórico-políticas. Na perspectiva de uma auto identidade há listas infindáveis de enumeração dos gêneros passíveis de serem autodeclarados.
O estudo das “identidades de gênero” é desenvolvido como noção de ato performativo [4] circunscrito a seu momento presente, de um não-lugar da contingência do corpo. Tal perspectiva teórica do gênero, como auto identidade, vela pela transcendência das circunstâncias da matéria.
As normas jurídicas imprescindem de substrato para sua aplicação no mundo dos fatos. Na seara dos axiomas jurídicos, o Princípio da Não Contradição [5] é cristalino ao postular: uma proposição não pode ser verdadeira e falsa ao mesmo tempo. Desta forma, o “sexo” de nascimento como dado biologicamente imutável, não pode ser retificável. Lado outro, as “identidades de gênero”, enquanto construções sociais e temporais, o podem.
Na medida na qual vários direitos de equidade surgem a partir de um dado factível, tais como aposentadoria, seguridade social e participação em competições esportivas, a aplicação do Princípio da Não Contradição se faz necessária.
4.2 Insegurança Jurídica
A Lei nº 6.015/1973 enumera em seu artigo 54 os elementos necessariamente constantes do assento de nascimento, dentre eles, o “sexo”. É possível registrar uma pessoa com o sexo feminino, masculino ou indefino, no caso de intersexualidade ou de definição postergada [6].
Tal possibilidade de registro quanto ao sexo ocorreu por uma adaptação dos debates do preenchimento médico-científico das DNV’s (declaração de nascidos vivos) e das Do’s (declaração de óbito). Porém, extrapolando as possibilidades fáticas, confundindo conceitos, e no anseio de adaptar a lei federal pensada em 1973 para os debates atuais, as decisões do STF e a regulamentação posterior do CNJ evidenciaram verdadeira insegurança jurídica.
O poder legislativo não poderia prever em 1973 o teor dos debates atuais quanto às identidades de gênero. Muito menos as segmentações sensíveis e subjetivas dos mesmos. De igual sorte, não soa adequado o poder judiciário alterar completamente a sistemática das normas sem ouvir diversos setores da sociedade plural, em verdadeiro ativismo judicial.
Os procedimentos para alteração de prenome e gênero pautados no Provimento nº 149, de 30 de Agosto de 2023, do CNJ ocasionam a alteração do campo “sexo” nos assentos de nascimento, o que causa uma distorção da realidade. Ou seja, na realidade trata-se de “gênero”, e não do “sexo”. Todos os documentos de identificação civil são expedidos com a base inicial do registro de nascimento assentado nos cartórios.
A correta identificação do sexo é fundamental para a verificação de políticas públicas e dados da segurança pública, como crimes de feminicídio, cuja lei baseia-se na materialidade do sexo. A partir desses registros de nascimentos, há casamentos, divórcios, uniões estáveis, óbitos, abertura de pessoas jurídicas, escrituração de contratos, transação de bens móveis e imóveis, registros e averbações nas matrículas de registros de imóveis, protestos de documentos de dívida e processos judiciais.
Os Cartórios de Registro Civil alimentam bancos de dados de informações para basear políticas públicas e essa distinção dos campos é necessária para evitar distorções da realidade. Políticas públicas baseadas em “sexo” são distintas das baseáveis em “gênero”, uma vez que sexo é um dado material, cientificamente comprovado, e "identidade de gênero" é um conceito abstrato, de caráter subjetivo, autodeclarado e modificável a qualquer “tempo e espaço” [7].
Os novos fatos da vida civil que adentram o cartório são comunicados para os outros registros que a mesma pessoa tenha. Por exemplo, alteração de nome e gênero ocorrida no nascimento é imediatamente comunicada para ser averbada ou anotada no registro de casamento, ainda que o divórcio daquela união tenha ocorrido. (artigos 106 e 107, Lei nº 6.015/73)
Além disso, os nascimentos, casamentos, óbitos e suas alterações são comunicadas aos órgãos públicos, tais como o INSS, IBGE, Secretaria de Saúde, Órgão Expedidor da Identificação Civil, Polícia Federal, Consulados, Embaixadas. (§3º, art. 54, lei ¨015/73; art. 229, V; 231, parágrafo único; Recomendação 40/2019/CNJ; e códigos de normas estaduais)
Na esfera pública, a insegurança jurídica também se mostra presente. Conforme decisões recentes, homens biologicamente assim designados ao nascer, se aposentaram como mulheres ao se autodeclararam pessoas trans nas Forças Armadas Brasileiras.
Tal fato não só é injusto ao sistema normativo brasileiro, que reconhece diferenças em aposentadoria em razão do trabalho não remunerado de cuidado que as mulheres desempenham nos lares; mas também com a própria saúde financeira do erário e do dinheiro público.
Notas:
[1] Recurso importante para uniformizar as decisões em todo o país no tocante à legislação federal. A lei de registros públicos é uma lei federal.
[2] A insegurança se apresenta em diversas situações, algumas delas em notícias selecionadas abaixo:
[3] OYĚWÙMÍ, Oyèrónkẹ́. . 2021. A invenção das mulheres: construindo um sentido africano para os discursos ocidentais de gênero . Trad. Nascimento, Wanderson Flor do. . - 1. ed - Rio de Janeiro: Editora Bazar do Tempo, 2021. 324 p.
BOHANNON, Cat. EVA. Como o corpo feminino conduziu 200 milhões de anos de evolução humana. Tradução: Fernanda Abreu. Rio de Janeiro: Companhia das Letras, 2024. 616p.
DALY., Mary. GYN/ECOLOGY: THE METAETHICS OF RADICAL FEMINISM. Beacon Press : Boston, 1978.
[4] BUTLER, J. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Tradução de Renato Aguiar. Rio de janeiro: Civilização Brasileira, 2003.
[5] Aristóteles. Metafísica. Porto Alegre: Globo, 1969.
[6] Provimento CNJ 122/2021, substituído pelo Provimento CNJ 149/2023.
[7] Trecho da Resolução Nº 348, de 13 de Outubro de 2020; "Art. 14. As diretrizes e os procedimentos previstos nesta Resolução se aplicam a todas as pessoas que se autodeclarem parte da população LGBTI, ressaltando-se que a identificação pode ou não ser exclusiva, bem como variar ao longo do tempo e